1. Como mel para a boca
Em A última tentação de Cristo — filme de Martin Scorsese a partir do romance de Níkos Kazantzákis (1954), obras célebres pela controvérsia que suscitaram —, David Bowie representa um Pôncio Pilatos obcecado com as razões de Estado e… com a toilette do seu cavalo. A cena não tem senão uma relação distante com a história apresentada no Evangelho, apesar da presença dos seus personagens e do seu contexto histórico. O filme, no seu conjunto, é uma ficção.
https://www.youtube.com/watch?v=XWuN3baaui8
2. Um texto bíblico
Nestes quatro domingos antes da festa da Páscoa, propomos-vos um pequeno itinerário através de quatro dos passos da Paixão. Esta semana focamos a nossa atenção no processo de Jesus diante de Pilatos.
Logo de manhã, os sumos sacerdotes reuniram-se em conselho com os anciãos e os doutores da Lei e todo o Sinédrio; e, tendo manietado Jesus, levaram-no e entregaram-no a Pilatos. Perguntou-lhe Pilatos:
“És Tu o rei dos Judeus?”
Jesus respondeu-lhe:
“Tu o dizes.”
Os sumos sacerdotes acusavam-no de muitas coisas. Pilatos interrogou-o de novo, dizendo:
“Não respondes nada? Vê de quantas coisas és acusado!”
Mas Jesus nada mais respondeu, de modo que Pilatos estava estupefacto. Ora, em cada festa, Pilatos costumava soltar-lhes um preso que eles pedissem. Havia um, chamado Barrabás, preso com os insurretos que tinham cometido um assassínio durante a revolta. A multidão chegou e começou a pedir-lhe o que ele costumava conceder. Pilatos, respondendo, disse:
“Quereis que vos solte o rei dos judeus?”
Porque sabia que era por inveja que os sumos sacerdotes o tinham entregado. Os sumos sacerdotes, porém, instigaram a multidão a pedir que lhes soltasse, de preferência, Barrabás. Tomando novamente a palavra, Pilatos disse-lhes:
“Então que quereis que faça daquele a quem chamais rei dos judeus?”
Eles gritaram novamente:
“Crucifica-o!”
Pilatos insistiu:
“Que fez Ele de mal?”
Mas eles gritaram ainda mais:
“Crucifica-o!”
Pilatos, desejando agradar à multidão, soltou-lhes Barrabás; e, depois de mandar flagelar Jesus, entregou-o para ser crucificado.
Evangelho segundo São Marcos, 15,1-15
3. O esclarecimento
É necessário debruçar-se sobre os costumes jurídicos do Império Romano para compreender bem o que está em jogo e as atitudes das diferentes personagens durante a passagem de Jesus diante de Pilatos.
A acusação política
A acusação dirigida a Jesus é claramente política: quem se fizer rei opõe-se ao César. Jesus é enviado a Pilatos porque representa um perigo potencial para a ordem pública.
Uma acusação grave
Roma não admitia que surgissem reis não aprovados nas regiões controladas pelo Império. O historiador judeu contemporâneo de Jesus, Flávio Josefo, relata um célebre caso nas suas Antiguidades Judaicas: Augusto manifestou um descontentamento extremo quando Aretas IV, mesmo se sucessor incontestado, subiu ao trono da Arabia aquando da morte de seu pai Obodas no ano 9 a.C., sem esperar a permissão de Roma.
Roma compreendia toda a pretensão real proclamada como uma rebelião contra o poder imperial. Em virtude da lex Iulia de maiestate, os romanos crucificaram muitos que se proclamavam reis e os que a eles aderiam. Pilatos não pode, por isso, ignorar uma tal acusação.
O silêncio de Jesus
Na lei romana, só podem ser executados sem apelo os criminosos presos em flagrante delito. Senão, o acusado deve ser interrogado. É por isso que Pilatos interroga Jesus.
Mas um acusado que recusa defender-se é considerado culpado, como o recorda Quintiliano na Instituição Oratória: «não há processo se o arguido não responde nada». Opondo o seu silêncio às acusações, Jesus compromete o processo e espera uma condenação à morte.
Jesus não tem nenhuma pretensão de competir pela realeza terrestre. Bastava-lhe dizer que essa acusação era falsa para ser inocentado. No entanto, a sua recusa em falar não é uma confissão. É uma forma de deixar acontecer a crucifixão. Jesus consente a ser crucificado e não procura defender-se: “a minha vida ninguém ma tira, sou eu que a dou” (Jo 10,18).
Porque é que Jesus consente em morrer? Falaremos disso no domingo de Páscoa.
4. E ainda uma palavra final…
Terminamos com o pitoresco “Ecce homo” de Victor Hugo, da sua coleção póstuma La fin de Satan (1886):
“Existia, no dia de Páscoa, um costume
Muito antigo, no qual judeus e Roma estavam de acordo,
Que o povo, de entre os condenados à morte,
Escolhesse um miserável ao qual agraciar.
Perto do palácio, lugar escuro onde a multidão se acumula,
Apressava-se, como os enxames em torno de colmeias,
o povo da cidade e das regiões vizinhas
Que um lictor continha com o punho do seu machado. […]
Via-se ir e vir nesse lugar, sem bastão,
Alegres, de olhar feliz, quem antes, dizia-se,
pálidos, e mendigando às portas das lojas,
eram cegos, surdos, coxos, paralíticos,
e que o homem chamado Cristo tinha curado.
Era a mesma multidão em gritos tumultuosos
Quem, antigamente, agitando ao vento ramos verdes,
E as almas a Deus totalmente abertas,
Batendo palmas, cantando cânticos, corriam
pelos caminhos diante de Jesus de Nazaré.
Vários o tinham bendito como um deus a quem se escuta;
E, por ter lançado os seus mantos sobre o caminho,
Tinham ainda terra nas suas roupas. […]
Apareceu de repente no limiar do palácio
Cristo coroado de espinhos e vestido de escarlate;
Tinha uma cana na mão; e Pilatos,
Mostrando-lho, diz-lhes: — Eis o homem.
Cristo
Estava em silêncio, de olhar no céu.
E Pilatos retomou:
— Deixamos hoje um miserável viver.
Povo, qual dos dois queres tu que eu liberte:
Barrabás, ou Jesus chamado Cristo? — Barrabás!
Gritou o povo. Então, sob os seus passos,
Julgaram escutar um estrondo
Ecoar… — Alguém se estava a rir por baixo da terra.”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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