Um Mundo Novo em Gestação
A História da Humanidade divide-se, rezam as tradições mais comuns, em cinco períodos bem definidos: A difusa e misteriosa Pré-História. A iluminada e arcana Antiguidade Clássica. A obscurantista Idade Média. A humanista Idade Moderna. E a inovadora Idade Contemporânea, na qual vivemos.
Sobre cada uma delas, sobre os nossos companheiros de viagem, os outros seres humanos, a nossa Terra, de onde vimos e para onde vamos, sabemos ainda pouco. Em cada momento e tempo histórico, a cada nova descoberta ou progresso tecnológico, sobressaltam-nos novas dúvidas, inquietações existenciais, epistemológicas, filosóficas. Somos por natureza e feitio seres inquietos e imperfeitos.
A cada uma daquelas fases da História, artificialmente estabelecidas, associa-se uma cronologia, discutível, mas clarificadora. A pré-História durou milhares de anos e termina cerca de 4 mil anos AC; a Idade Antiga prolonga-se até ao fim do Império Romano do Ocidente (c. 3500 anos); a Idade Média dura mil anos (até à queda de Constantinopla); a Moderna, encerrada simbolicamente pela revolução francesa, conta apenas 336 anos.
Cada uma (fase da História) dura menos do que a anterior. A nossa idade, a Contemporânea, tem apenas 234 anos. E está a chegar ao fim.
Cada uma dura menos do que a anterior. A nossa idade, a Contemporânea, tem apenas 234 anos. E está a chegar ao fim.
Cada um desses períodos caracteriza-se por um determinado modo de vida dos seres humanos, dos seus costumes, organização social, modos de produção, desenvolvimento cultural e tecnológico. E dos valores que constituem a moral dominante, sempre relativa a algumas sociedades e distintos entre si.
O que nos reservará então o período que agora se inicia, no fim da Idade Contemporânea? E que evento simbólico lhe porá fim?
Tudo começou a 24 de fevereiro de 2022
Ao som das colunas militares a caminho de Kiev, com a música de fundo das palavras de Vladimir Putin a anunciar uma “operação militar especial” para livrar a Ucrânia dos nazis, proteger os russófonos do Leste da “pequena Rússia”, remover o governo corrupto de Zelensky & Cia. e impedir a NATO de atingir as fronteiras da “Grande Rússia”, pode bem ter “começado a acabar” uma época.
É apenas uma hipótese, uma conjetura sem rede, um enunciado por confirmar. Mas faz sentido. Qualquer que seja a realidade em que vamos viver os próximos anos, quase nada será igual aos últimos cem anos – quanto mais aos últimos 234.
Um crescimento continuado, exponencial – na verdade, quântico – do desenvolvimento tecnológico e da inovação científica marcarão inexoravelmente a nova Idade. A Inteligência Artificial (IA) mudará tudo: os modos de produção, os empregos, o lazer, novas formas de pensar surgirão e perecerão à velocidade da luz, o ser humano terá de repensar a política e a ciência, a economia e a cultura.
Nas artes, muito provavelmente (já está a acontecer) os programas informáticos – máquinas baseadas em redes neurais artificiais, matriz do “machine learning” – farão música, escreverão romances, pintarão quadros.
A guerra na Ucrânia pode provavelmente ser a última combatida, pelo menos parcialmente, com os antigos métodos: homens a morrer aos milhares em cargas absurdas contra fogo e fúria; tanques, caixões ambulantes, a acabar como montes de sucata algures na paisagem desolada; aviões no valor de milhões de euros, destruídos num ápice por um qualquer drone solitário.
A guerra na Ucrânia pode provavelmente ser a última combatida, pelo menos parcialmente, com os antigos métodos: homens a morrer aos milhares em cargas absurdas contra fogo e fúria; tanques, caixões ambulantes, a acabar como montes de sucata algures na paisagem desolada; aviões no valor de milhões de euros, destruídos num ápice por um qualquer drone solitário.
Se a data simbólica para o início da nova Era não for 2022, será porque, num futuro próximo, algo de muito mais grave e decisivo se passará. E isso é o que mais devemos temer pois que, entre o que de verosímil podemos imaginar, conta-se:
Uma guerra nuclear, destruidora. Um vírus mortal, mistura de Covid e Ébola, ou outra coisa qualquer. Eventos climáticos extremos, de dimensão catastrófica. A revolta da IA, auto-consciente e sentimental, no momento da singularidade. Cenários que tememos (devemos temer), sem que verdadeiramente saibamos se alguma vez acontecerão.
Mas a guerra na Ucrânia, em si mesma, para além de comportar alguns desses riscos, representa já uma ameaça sem igual e acarreta o regresso a um Mundo multipolar, onde os grandes poderes voltarão a querer reimplantar as suas zonas de influência, tradicionais ou não.
A Idade da Vertigem
Ao passar um ano sobre o dia em que a Federação Russa, potência nuclear herdeira de um Império que foi dos czares antes de ser dos sovietes, ninguém saberá com certeza como será o Mundo em que vamos viver, como serão as relações de poder, a organização social, o ambiente, o trabalho, a vida.
Não deverá ser um Mundo a preto e branco, como na guerra fria. Ou um Mundo onde a História acabe, como quis Fukuyama, onde a democracia definida a Ocidente se torne o definitivo regime político. Nem sequer um Mundo submetido ao poder absoluto de uma potência (no caso, os EUA), guardiã moral dos valores universais, por si criados. Esta será certamente a Idade da Vertigem. Uma era complexa.
Na guerra da Ucrânia, entretanto, a lembrar outros conflitos, o Ocidente global, Europa, EUA e aliados, afirmam defender o bem e a democracia, por si representados, contra um agressor com pulsões imperialistas, comandado por um novo czar autocrático. Para Putin é a mesma coisa – só que ao contrário: é o Ocidente moralmente decadente, armado por uma Nato agressiva, que quer destruir a Rússia e ameaça as populações russófonas do Donbass (e da Crimeia).
Na guerra da Ucrânia, entretanto, a lembrar outros conflitos, o Ocidente global, Europa, EUA e aliados, afirmam defender o bem e a democracia, por si representados, contra um agressor com pulsões imperialistas, comandado por um novo czar autocrático. Para Putin é a mesma coisa – só que ao contrário: é o Ocidente moralmente decadente, armado por uma Nato agressiva, que quer destruir a Rússia e ameaça as populações russófonas do Donbass (e da Crimeia).
O resto do Mundo discorda de ambas as visões. Pouco sensível àquela retórica, exige a cessação das hostilidades e o regresso da paz. Não se comove com a possibilidade de a Ucrânia ter de entregar território para acabar com a guerra, nem acha que a democracia perfeita seja a dos países do Ocidente. São poderes que, paulatinamente, nesta nova Era da Vertigem, projetarão as suas ambições próprias, gizarão novas esferas de influência e uma geoestratégia à altura de uma geopolítica renovada, baseada numa nova realidade. Poderes como a China, a Índia, o Brasil. Ou África, se África for capaz de se reinventar.
Um Mundo novo em que, talvez (mas não tenho bola de cristal), o confronto de Civilizações previsto por Huntington se aprofunde – ou talvez não. Nele, a Europa, os EU e o Ocidente, serão apenas mais um poder, quiçá nem sequer o mais relevante.
Ou talvez não, repito. São inúmeras as variáveis e as incógnitas, a começar pelos cenários mais catastróficos acima referidos. A complexidade crescente não encontra correspondência na evolução das instituições, sejam elas políticas, económicas, nacionais ou supranacionais (é, simplificadamente, a tese de Daniel Innerarity). E o crescimento da IA empolga e assusta.
Ao Homem, numa época em que o pensamento crítico se desvanece, convencido de ser omnipotente pela dimensão daquilo que foi capaz de realizar, resta refletir sobre a sua condição; e humildemente reconhecer que, sem a dimensão espiritual e o respaldo do divino que as religiões, e desde logo a Igreja Católica, oferecem, a nova Era da Vertigem, complexa e imprevisível, será um tempo de ameaças e medo.
O que a guerra na Ucrânia despoletou ainda é difícil de descortinar. Mas a mudança está em curso e foi nela que começou.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.