Um adeus a Ennio Morricone

A obra de Ennio Morricone, que morreu na segunda feira, é expressão de uma espiritualidade interior. Para o compositor, a música resultava de um vínculo entre o ver e o escutar.

A obra de Ennio Morricone, que morreu na segunda feira, é expressão de uma espiritualidade interior. Para o compositor, a música resultava de um vínculo entre o ver e o escutar.

Foi ontem em Roma, na cidade que o viu nascer já há 91 anos, que Ennio Morricone se despediu deste mundo. A mensagem foi-nos dada por um amigo próximo, Giorgio Assumma, assegurando-nos que ele partiu com o “conforto da fé”.

Mario Morricone, seu pai, foi um trompetista apaixonado pelo jazz. E, a confiar nos relatos que o próprio Ennio nos deixou, Libera Ridolfi, sua mãe, vivia e partilhava uma fé tão simples quanto profunda. Assim cresceu Morricone com as suas três irmãs, num ambiente marcado pela música e pela fé católica, sem que houvesse separação entre essas duas dimensões da sua vida. Apesar de o conhecermos pela sua produção musical, convém não esquecer, como o próprio esclarece numa entrevista concedida a Zenit em 2009, que a “fé” sempre se fez presente na sua obra. Não foi certamente por acaso que o Papa Francisco lhe concedeu, em 2019, a Medalha de Ouro do Pontificado, como forma de reconhecimento pelo seu “extraordinário compromisso artístico, que também tinha aspetos de natureza religiosa”.

Talvez por isso, a gratidão que exprimimos hoje ao recordar a sua vida e o seu legado possa elevar-nos até um Deus que acolhe a nossa humanidade naquilo que de mais simples ela tem. Explico-me.

Morricone compôs para centenas de filmes e séries televisivas. Isto, sem contar com as outras inúmeras produções musicais fora do âmbito cinematográfico. Para a história, ficará certamente a música que ele escreveu para os Westerns Per un pugno di dollari (1964), The Good, the Bad and the Ugly (1966) e Once Upon a Time in the West (1968). O mesmo em relação à banda sonora do drama Days of Heaven (1978), de Terrence Malick, que lhe valeu uma nomeação para os Óscares pela primeira vez na sua carreira. Além dos inúmeros filmes para os quais compôs bandas sonoras e dos vários realizadores com quem trabalhou, Morricone também gravou com artistas de diferentes tipos de música, tais como Chet Baker, Chico Buarque, Yo-Yo Ma, e até a nossa Dulce Pontes…

É difícil elencar a lista completa dos filmes, dos respetivos géneros cinematográficos e de todos os artistas envolvidos. Tudo isso, aliado à ampla gama de estilos musicais que ele manejava, comprova a versatilidade da sua arte. Foi essa versatilidade, aliás, que lhe permitiu percorrer aventuras de cowboys, histórias de amor, vidas de clérigos, dramas históricos dos mais variados géneros… Dessa forma, não só se revela a versatilidade da sua arte, como também percecionamos o que há de comum entre as suas diversas produções musicais: estimular e intensificar as múltiplas emoções que esta vida nos dá a sentir, nos seus momentos mais simples e marcantes que para sempre guardamos no coração.

Recordo, a esse propósito, e com especial melancolia, Nuovo cinema Paradiso (1988). Sem dúvida, um dos meus filmes preferidos, cuja narrativa se enriquece com a bela música de Morricone. Os sons do piano e do clarinete expressam bem o que se passa, não só naquela trama narrativa, mas em muitas das nossas vidas. Encontros e desencontros de amores conquistados e perdidos; beijos dados e que ficaram por dar por quem deseja expressar amor no gesto de abraçar e de se entregar aos braços do ser amado. Quem não se comove com a cena final das imagens dos beijos apaixonados, cenas que haviam sido cortadas e que Alfredo religiosamente guardara, como metáfora do amor que o protagonista principal, Salvatore, teria perdido na juventude?

A mesma carne humana, que sente e se emociona na fragilidade das nossas dúvidas e aspirações, angústias e expetativas, projetos e imprevistos, revela-se através da fé dos padres e irmãos jesuítas, cuja história discorre em The Mission (1986). Os sons do oboé do Padre Gabriele alimentam a esperança num Reino de Deus que é possível mesmo já neste mundo; esperança esta que levou os missionários jesuítas do século XVIII a dar a vida pela inculturação do Evangelho na América Latina.

Na medida em que a sua música intensifica o que se acolhe, o que se contempla e o que se sente neste mundo, tem razão Ravasi quando diz que a sua obra é “expressão de uma espiritualidade interior”.

No contexto das recentes tentativas de revisionismo histórico, que tende a ver tudo segundo a dicotomia clara e distinta de preto ou branco (quando a realidade se faz de um complexo cinzento), talvez valha a pena escutar o Ave Maria Guarini escrito por Morricone em ode aos indígenas que acolheram estes missionários fora da sua Europa natal. De facto, esta peça musical simboliza bem o Evangelho autêntico que nasce do coração sincero de homens e mulheres que partilham uma fé capaz de respeitar culturas diferentes. Como poderia o Cardeal Altamirano não se comover com a voz dos indígenas que louvam a Virgem Maria com a fé pura da devoção popular, enquanto cantam o Ave de Morricone?

A versatilidade de um compositor que combina coros litúrgicos com música étnica, guitarradas espanholas com instrumentos de percussão indígenas, conduz-nos a uma espiritualidade que é capaz de nos reunir enquanto pessoas diferentes, mas iluminadas por Deus. “A espiritualidade”, como ele sublinhava, “está sempre presente na [sua] obra”: “Como crente, a fé está sempre presente” e essa fé pode ser “reconhecida pelos outros, pelos musicólogos, e por todos aqueles que não se limitam a analisar os excertos musicais, mas que compreendem a minha natureza, o sagrado e o misticismo”.

Podemos compreender, nesse sentido, as palavras do Cardeal Ravasi, atual presidente do Pontifício Conselho para a Cultura e seu amigo próximo. Segundo Ravasi, Morricone foi um “crente fiel, mas criativo. Para ele, a música era escuta e visão”. É interessante recordar esta perspetiva de Morricone, segundo a qual a música resulta de um vínculo entre o ver e o escutar. Na medida em que a sua música intensifica o que se acolhe, o que se contempla e o que se sente neste mundo, tem razão Ravasi quando diz que a sua obra é “expressão de uma espiritualidade interior”.

Como fruto desta espiritualidade, desta fé e, em particular, da sua proximidade à Companhia de Jesus, surge a única Missa que ele compôs. Dedicada ao Papa Francisco, como o título latino da obra indica – Missa Papae Francisci –, a peça foi inaugurada na Chiesa del Gesù, Igreja-mãe dos jesuítas em Roma, na presença do próprio Morricone a dirigir a Roma Sinfonietta. A data escolhida para o evento foi 7 de agosto de 2014, dia em que os jesuítas e toda a Igreja celebraram os 200 anos da reconstituição da Companhia que deseja identificar-se com a bandeira de Cristo.

Giovanni Arledler recorda que foi o P. Daniele Libanori, à época reitor do Gesù, que pediu ao compositor uma peça para celebrar o renascimento da ordem dos jesuítas. No final da sua carreira fomos, então, brindados com uma obra de música sacra que combina, como sempre nos habitou Morricone, estilos diversos, desde as melodias gregorianas até à linguagem musical de um Igor Stravinsky. Uma obra longa, talvez a mais difícil que ele nos deixa, esta Missa merece ser escutada até ao Ad maiorem Dei gloriam final que retoma temas da banda sonora de The Mission.

Um “adeus” a Ennio Morricone é um “até sempre”, não só porque o seu legado continuará connosco, mas também porque, através dele, somos conduzidos ao Deus com quem ele sempre acreditou se encontrar agora.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.