A pandemia bateu à porta da Escola do Largo duas semanas após termos, finalmente, aberto as portas. Estávamos a iniciar a segunda semana de espetáculos, depois de uma brilhante abertura ao som da música do Domenico Lancellotti, e a sua banda Parque Temático, com a Nina Miranda a cantar, no meio de músicos brasileiros recém-chegados a Lisboa. Concretizava-se naquela noite o milagre do nascimento de um espaço, depois de meses de confusões de empreitadas e mal-entendidos de obras intermináveis. Seguiu-se, na onda dos milagres da ressurreição a acontecer numa antiga sala mortuária, a peça Aqui Somos Todos Lázaros, cancelada antes do quarto dia de espetáculo. Ao mesmo tempo, cancelavam-se também os ensaios da peça Rei João, de Shakespeare, que estreava a 30 de Abril, e as aulas de teatro de comunidade, que tinham começado ainda em tempo de pó e andaimes, numa prova que o teatro é tantas vezes mais teatro com os seus amadores.
Fechadas as portas da Escola, entramos em modo sobrevivência, num frenesim de candidaturas a apoios cada vez mais extraordinários e de maior emergência, que salvo um apoio pontual da sempre presente Fundação Gulbenkian aos atores de elenco do Rei João, em nada resultaram. Mantiveram-nos, isso sim, a trabalhar, sentados em frente ao ecrã, a inventar projetos e papeladas impossíveis e talvez isso nos tenha ajudado a manter a cabeça ocupada, e a esperança acesa, pelo menos até à próxima publicação dos infelizes resultados das candidaturas.
“(…) fomos aprendendo qualquer coisa sobre o cómico e o trágico, sobre a nossa situação, e os dias foram passando, menos lentamente.”
Criamos também, de forma mais ao menos espontânea, três grupos de trabalho. Um à volta da peça Tragédia, Uma Tragédia, de Will Eno, que eu já tinha encenado em 2008 em Guimarães. É uma peça também sobre um grande acontecimento – um dia em que o sol não nasce – e o texto remete-nos para estes discursos vazios dos noticiários da pandemia. Lemos o texto diariamente, cinco atores, por zoom, preparando uma emissão on-line, que decidimos adiar para uma apresentação ao vivo, para estarmos à altura do tempo investido e do valor do texto e da equipa, onde estão os atores Diana Lara, Pedro Moldão, Jorge Andrade e o autor Jacinto Lucas Pires (não é só na literatura que ator e autor se misturam). O segundo foi quando este ator voltou a colocar o u no seu lugar, e escreveu um texto para atores e músicos também confinados, mas em outras cidades: Paris, Madrid e Roma. Uma peça e um futuro espetáculo nas línguas da europa do sul – Palavra-que-não-se-diz. Fizemos leituras da peça por zoom, traduzindo simultaneamente o texto originalmente em português e a ensaiar ou a repetir (palavra francesa mais certeira), aprendemos mais das línguas uns dos outros. São dois espetáculos para fazer em 2021, e quando isso acontecer, será provavelmente o começo da compreensão deste tempo que passou. O terceiro grupo foi o particípio presente da conjugação do verbo amar-o-teatro: o nosso grupo de amadores-amantes, transformou-se no zoom, e inventamos todas as quartas-feiras, umas leituras da Gaivota, do Tchekov, sem hesitação, sem falhas, sem faltas. Às vezes éramos demasiados, uns 15, outras vezes menos e liamos mais deixas mais vezes. Ensinamos uns aos outros coisas sobre a história da Rússia, sobre esse tempo dessa história, sobre estas personagens, e dentro da comédia que liamos, fomos aprendendo qualquer coisa sobre o cómico e o trágico, sobre a nossa situação, e os dias foram passando, menos lentamente. No final das leituras, a sessão ficava aberta no computador e as pessoas continuavam livremente a conversar sobre outros assuntos. Uma lição de teatro e comunidade, por assim dizer. Está ainda por fazer uma gravação para uma desejada emissão radiofónica.
O Teatro não tem tempo para se perder em modas passageiras, nem em exercícios de vaidade vã. Venha o Shakespeare. Levantem-se não estátuas, mas as palavras vivas do Padre António Vieira.
Depois chegou o quase-verão, e antes ainda da ilusão do fim da pandemia, a Escola do Largo aceitou um desafio da RTP para a criação de conteúdos sobre o nosso trabalho, teatro e música, que resolvemos filmar em Lisboa, Vila Nova de Famalicão, Castelo Branco e Ponte de Sôr. Teresa Siqueira e Rodrigo Rebelo de Andrade a cantarem para retângulos de relva cuidadosamente desenhados com pessoas a distâncias de segurança, Aqui Somos Todos Lázaros a voltar ao local do crime no Cine-teatro Avenida, Tomás Cunha Ferreira e Domenico a conversarem através de sons, ou será de imagens?, com o Ricardo Dias Gomes pelo meio, e depois Lancellotti, Erbetta, Tarik e Dias Gomes, a tocarem um concerto para uma plateia maravilhosamente vazia, como se isso fosse uma homenagem ao público que voltará um dia a encher as cadeiras da plateia do Teatro-Cinema. Será possível explicar o milagre desse acontecimento sem ser a ouvir essa gravação?
Fica ainda por fazer nos próximos meses um documentário sobre a criação do Rei João, ainda para a RTP, que ganhará vida finalmente, num ano que será mais de criação do que este foi, com a encenação também de um espetáculo chamado Brenhas, com textos da obra do Padre António Vieira. São espetáculos de resistência, num caminho de criação alternativo, financiado por teatros fora de Lisboa, sem apoio da tutela, num caminho de recuperação de uma obra literária pouco estudada, pouco compreendida, mas que felizmente as cidades da Guarda, de Aveiro, de Torres Vedras, de Arcos de Valdevez, de Vila Real e de Castelo Branco, acreditam como fundadora da nossa língua e da nossa identidade como país. Num tempo de crise como este, a nossa escolha como criadores é procurar respostas nos nossos textos fundamentais. O Teatro não tem tempo para se perder em modas passageiras, nem em exercícios de vaidade vã. Venha o Shakespeare. Levantem-se não estátuas, mas as palavras vivas do Padre António Vieira.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.