Todos os dias da quarentena, os miúdos levantam-se, fazem a cama, tomam o pequeno-almoço, lavam os dentes, sentam-se à secretária com o Zoom ou o Teams e depois fazem os trabalhos de casa até à hora do almoço. Só que não. Famílias perfeitas só com filhos perfeitos: podem agora deixar de ler, ou ler para se sentirem ainda mais perfeitamente perfeitas.
Os dois rapazes cá de casa que andam na primária precisam de ajuda para se lembrarem das horas e para se ligarem aos encontros com os professores, precisam de encorajamento mais ou menos enérgico para fazerem o que lhes compete, e depois há o de quatro anos que é uma matraca e quer companhia para brincar, o que torna qualquer raciocínio que exija mais do que um neurónio bastante improvável. E é aqui que os outros berram “é impossível conseguir pensar com o N. sempre a falar” e eu fico mais descansada por não ser a única que não consegue encadear dois pensamentos.
Claro que a motivação para estudar não é a mesma que para jogar Fortnite, aí já ninguém se queixa do barulho. E depois, claro, quem é que quer estudar quando se pode brincar às lutas com os irmãos, em que algum inevitavelmente desata a berrar, antes de berrar eu que não levo ninguém à Estefânia durante a quarentena.
E se não forem as lutas são origamis do Youtube de estrelas e espadas ninja (e eu que andei quarenta e um anos a achar que origamis eram sempre cisnes e rãs e paz e amor); e se não forem origamis ninja é jogar nintendo switch às escondidas até eu confiscar e enfiar tudo no armário do meu quarto (o confisco tem uma longa tradição cá em casa, e rio-me sempre por dentro a ouvir miúdos de três anos a dizer que não sei o quê foi confiscado).
Para além de uma caipirinha semanal, há algumas coisas que me têm ajudado a não abandonar o mundo das pessoas relativamente sãs e passar-me para o outro lado.
Há uns anos tive uma filha a fazer o quarto ano em ensino doméstico e esta quarentena reavivou o meu interesse pelo ensino doméstico (apesar de estarmos todos em ensino à distância e não em ensino doméstico, mas isso fica para outro artigo). No livro The Brave Learner, que estou a ler, Julie Bogart sugere que, perante um miúdo que não quer trabalhar, se pergunte “quanto consegues fazer?” e que se aceite a resposta. A sabedoria deste conselho está aqui: às vezes, as coisas parecem aborrecidas, assustadoras ou impossíveis de fazer. E, para alguns miúdos ou em algumas situações, são mesmo. Perguntar-lhes o que conseguem fazer inverte a estrutura hierárquica tradicional professor-aluno em que um manda e o outro obedece. E implica duas coisas: confiança na vontade intrínseca dos miúdos de tentar e de aprender, e a recusa de entrarmos numa espiral de preocupação desrazoável com o futuro dos nossos filhos.
Nesta quarentena em que tanta coisa é difícil, esta pergunta – “o que é que consigo fazer agora?” – tem sido útil também para mim. Libertarmo-nos do peso de tudo o que achamos que temos de fazer e pensar naquilo que nos sentimos capazes efetivamente de fazer.
Também me tem inspirado muito a ideia de que os miúdos estão sempre a aprender – toda a gente devia ler o “How Children Learn” de John Holt – e, se estão a fazer alguma coisa que escolheram, é porque isso preenche alguma necessidade de aprendizagem, ou emocional ou de compreensão do mundo. Portanto, o chamado reframing é fundamental. Os miúdos estão a discutir? Workshop grátis de gestão de conflitos. Horas a fazer origamis? Concentração, capacidade de seguir instruções e visão no espaço. Constroem fortes com as almofadas do sofá? Imaginação. Saltos? Coordenação e avaliação de risco. Às vezes, basta este exercício de perceber tudo o que de bom está a acontecer no que parece só um fazer tudo para não fazer os trabalhos da escola.
Sim, famílias perfeitas, claro que os miúdos precisam de ordem, de estrutura, de trabalho árduo. Mas a verdade é que, aqui como no resto da vida, a realidade raramente é como nós achamos e, aqui como no resto da vida, mais vale aprender a flexibilidade e a arte de responder à realidade tal como ela é, do que sucumbir à ansiedade do que devia ser – com toda a destruição que isso inevitavelmente traz. Nenhum algoritmo ou pergunta de interpretação vale uma relação destruída. Há alturas para ser mais firme, mas quando nos sentimos em risco de começar a fazer fitas como uma criança de 2 anos, mais vale arrumar os livros.
Nesta quarentena em que tanta coisa é difícil, esta pergunta – “o que é que consigo fazer agora?” – tem sido útil também para mim. Libertarmo-nos do peso de tudo o que achamos que temos de fazer e pensar naquilo que nos sentimos capazes efetivamente de fazer em cada momento ajuda-nos a dar um primeiro passo, e um segundo e eventualmente um terceiro. O objetivo é procurar a vontade de Deus em cada momento e não tentar cumprir um qualquer plano pré-definido para a vida. A roupa precisa de ser estendida, mas e se de repente sentimos que um filho precisa de falar ou de uma história? Ou que precisamos mesmo de uma hora de silêncio sem ninguém?
A boa teologia tem a grande vantagem de se aplicar a tudo, mesmo a quarentenas. Já Dietrich Bonhoeffer falava na sua “Ética” da exigência de renunciar às questões “como me torno bom?” e “como posso fazer algo bom?” e de levantar a questão da vontade de Deus. Tenhamos a coragem de em cada momento nos abrirmos à vontade de Deus para esta quarentena, mesmo que isso vá contra a vida como achávamos que ela devia ser. Isso e caipirinhas.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.