Se o sol nascer, a vida não acabará amanhã

Andamos frequentemente num loop de atividades “non-stop”, o tempo disponível para parar e saber existir na nossa própria companhia é nulo.

Andamos frequentemente num loop de atividades “non-stop”, o tempo disponível para parar e saber existir na nossa própria companhia é nulo.

O P. Vítor Feytor Pinto, da paróquia do Campo Grande, deixou-nos na passada quarta-feira. Para os que tiveram oportunidade de o conhecer e ouvir, lembrar-se-ão das suas homilias sempre compostas por três pontos: era desta forma que o padre Vítor acreditava tornar as ideias mais claras e concretas, ainda que para cada ponto houvesse sempre tanto para dizer. Ao reler a última entrevista que deu ao jornal i, em 2018, não posso deixar de reconhecer-lhe uma rara e humilde inteligência, mas também uma extraordinária imagem daquilo que deve ser uma boa comunicação. Não escrevi esta pequena reflexão como um tributo ao padre Vítor, mas de certa forma senti-me inspirado pelas suas palavras e como tal, gostaria de deixar-lhe um agradecimento especial.

Perguntavam-lhe nesta conversa aberta o que mais perturba as pessoas atualmente, ao que o padre Vítor respondeu “A instabilidade deste mundo. Antes, as pessoas nasciam, cresciam, desenvolviam-se e as coisas seguiam direitinhas. Olhe o meu caso: de repente, tenho sobrinhos na Indonésia, em Taipé, nos EUA, no Porto, outra na Madeira. Em Lisboa estão só dois. A vida de hoje é assim. E isto traz instabilidade, angústia, solidão. A solidão é um drama muito grande para o ser humano.”

Na medida em que as palavras do padre Vítor me fazem sentido, propus-me tentar compreender algumas das causas explicativas para os níveis de intranquilidade serem tão crescentes entre os jovens e os jovens adultos de hoje. A verdade é que o facto de vivermos num mundo em que as oportunidades e opções de escolhas triplicaram não implica que estejamos a caminhar numa direção necessariamente superior de bem-estar. Tudo aquilo que de seguida escrevo não é apenas e mais do que uma opinião simples e pessoal, mas sobretudo tantas vezes sentida na pele.

Nós queremos viver como se o dia de hoje fosse o último das nossas vidas, como se o amanhã não existisse. E se o dia de amanhã não existe, eu tenho de aproveitar ao máximo o hoje.

Nós queremos viver como se o dia de hoje fosse o último das nossas vidas, como se o amanhã não existisse. E se o dia de amanhã não existe, eu tenho de aproveitar ao máximo o hoje. É por esta razão que damos por nós a saltar de festa em festa, de jantar em jantar, ou até mesmo de amigo em amigo ou de relação em relação. Queremos conhecer 10 países em 15 dias, ter 3 trabalhos diferentes por ano, fazer parte de experiências fortes como um voluntariado internacional, ou até ir trabalhar para a Austrália. Se não for algo em grande, então não deverá ser merecedor da nossa atenção.

Porque acreditamos que estamos no direito de querer fazer e ter tudo, mas não se pode fazer tudo, cria-se uma disparidade muito grande entre aquilo que são as expectativas e o que é a realidade. E então, conformamo-nos ao nosso dia-a-dia, aos nossos trabalhos, à nossa rotina “enfadonha”, sem nunca deixar de sonhar, mas sem nunca acreditar que o que temos é suficiente – geramos instabilidade – porque não nos permitimos sentir verdadeiramente completos nem gratos.

Este tipo de mentalidade, comum atualmente, também acarreta outras consequências, que se podem alastrar do campo profissional ao pessoal e familiar. À primeira vista consigo salientar uma que me parece preocupante: estamos a perder a capacidade de nos sentirmos íntegros connosco próprios. Porque como disse, andamos frequentemente num loop de atividades “non-stop”, o tempo disponível para parar e saber existir na nossa própria companhia é nulo. Isto gera um efeito bola de neve: se não nos damos tempo a nós para refletir, pensar sobre o que verdadeiramente queremos e é importante para nós, o que nos faz bem, reduzimos drasticamente a nossa capacidade de tomar decisões ponderadas e conscientes. Perdemos o foco. É assim que permitimos às inseguranças, dúvidas e inquietações desenvolverem-se – geramos instabilidade.

Isto não significa que devemos hipotecar a nossa vida social – pois também ela faz parte de nós. Mas a garantia de um maior equilíbrio advirá sempre de uma conjugação do fator social com o eu, individual. Eles são mutuamente inclusivos. E como podemos garantir esta conjugação? Entregando-nos. Entregando-nos a projetos ou atividades pessoais, hobbies próprios, fomentando interesses e paixões. Ah, e não. Não têm de ser coisas em grande.

O que digo é que nos dediquemos a interesses, por mais pequenos que sejam, que nos convertam em pessoas mais ricas, com mais valor, pessoas diferenciadas. Consigo encontrar tantos exemplos desde um voluntariado, escrever (pessoalmente o meu favorito), um desporto, música, cozinha, ou tantas outras ocupações – o que é importante é que não precisemos necessariamente de mais ninguém a não ser o nosso próprio eu, para as fazer.

Não precisaremos de viver como se o dia de amanhã fosse o último. Se o soubermos fazer, encontraremos tranquilidade nas pequenas coisas, estabilidade e alegria nas nossas entediantes vidas rotineiras.

No entanto, isto acarreta um possível grande handicap, que vem dar ao encontro de uma outra característica onde, também não somos uma geração exemplo – a capacidade de sacrifício. Porque para haver entrega, é preciso abdicar, é preciso sacrificar, é preciso fazer escolhas e dizer que não. Posso-vos dizer que, na minha curta vida, foram mais as vezes onde acredito que perdi do que ganhei, por não ter sido capaz de me sacrificar, porque parece sempre haver um plano à mão mais fácil e aliciante. Estes são normalmente planos de curto prazo, que para além de nos irem consumindo, retiram-nos uma visão mais holística de longo prazo, que é fundamental para preservar para um maior equilíbrio.

Gastamos uma quantidade muito considerável de compromisso e de energia com os outros, mas esquecemo-nos de o fazer também connosco. Temos, no mínimo, a obrigação de lutar para sermos a nossa melhor versão e só o poderemos ser se soubermos reconhecer que estamos a construir um caminho de utilidade e de trato tanto social como pessoal. Se faço esta alerta, é porque estou, ou estamos, bem a tempo de mudar sempre que nos vejamos dentro desta atitude mais passiva.

Aquilo em que acredito é então que esta capacidade de sacrifício, por si, dará frutos. Podemos não os ver imediatamente, podemos questionar-nos, mas a vida encarregar-se-á de os trazer, como sempre o fez. Se não acreditam em mim, perguntem às pessoas que já o fazem e bem melhor do que eu, pessoas jovens que já criaram os seus projetos, as suas marcas, desenvolveram os seus talentos, que foram capazes de dar um passo em frente e afirmar, “eu quero-me destacar e é assim que o vou fazer”.

E porque acredito nisto? Porque é desta forma que criamos bases pela qual passamos a ser reconhecidos, que nos caracterizam, e onde podemos ir buscar forças nos momentos menos bons, bem como distrações positivas. Seremos mais felizes e mais plenos – duas condições necessárias para uma maior tranquilidade. Não precisaremos de viver como se o dia de amanhã fosse o último. Se o soubermos fazer, encontraremos tranquilidade nas pequenas coisas, estabilidade e alegria nas nossas entediantes vidas rotineiras. No fundo, saberemos reconhecer que, se o sol nascer, a vida não acabará amanhã. Nem depois. E viveremos bem com isso.

Fotografia: Agência Ecclesia.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.