Se eu rezar, haverá menos tiros? A pergunta podia ser de uma criança e fere a dobra dos nossos joelhos. Há demasiadas guerras na história do mundo para que possamos olhar para a oração como o remédio secreto que cala as armas. Então, para quê rezar em tempo de guerra?
Confessar (lamentar) a nossa impotência
Nos salmos há lugar para o lamento e para o protesto, para questionar Deus “Senhor porque te conservas à distância e te escondes nos tempos de angústia?” (Sl 10, 1). Diante da nossa impotência, da insegurança que nos abala, grita a nossa incredulidade. Poder fazê-lo em verdade, estando na presença de Deus sem esconder a nossa perplexidade e a nossa mágoa (raiva) é um exercício de autenticidade que nos expõe a Deus, oferecendo-lhe a nossa verdade. Somos criaturas e há momentos em que confessá-lo desde a escuridão é deixar que se rasgue a fenda pela qual a luz pode entrar. “There is a crack, a crack in everything.” (Leonard Cohen)
Seja feita a Tua vontade
Por vezes, rezamos como se Deus pudesse bloquear os botões da guerra. Esperamos talvez por um deus do olimpo que, atuando de acordo com a intensidade de estímulos humanos, pudesse ir resolvendo o mundo através de intervenções pontuais (Pedro Castelao). Deus está, conhece, acompanha, inspira, mas não pode fazer por nós. Não é Ele que pode parar os tiros. Recordo o jesuíta francês François Varillon que, na bênção da refeição, ao ouvir a oração “Senhor dá aos pobres o pão de cada dia” imaginava em surdina a resposta de Deus: “Dá-lhes tu!” No Pai Nosso pedimos que seja feita a vontade de Deus para que aprendamos a aderir a ela. Não pedimos para resolver o mundo (não poderíamos), pedimos seja feita a Tua vontade. A vontade de Deus é salvar e reconciliar. A vontade de Deus é a paz. Como posso aderir a essa vontade neste tempo em que vivo? Que outra pergunta poderíamos fazer na nossa oração?
Não rezamos sozinhos
Rezamos e reforçamos os laços de pertença. Rezamos para que o nosso olhar não fique colado ao chão, para que mundo ferido alargue o nosso horizonte e convoque a nossa atenção e os nossos gestos. Rezamos e sabemos que os membros injustamente maltratados e violentados pertencem ao corpo da nossa humanidade. Rezamos para não nos esquecermos que somos todos irmãos.
Receber um coração de carne
“Dar-lhes-ei um coração novo e infundirei no seu íntimo um espírito novo. Arrancarei do seu corpo o coração de pedra e dar-lhes-ei um coração de carne”. (Ez 11, 19) Sim, podemos deixar que as nossas emoções sejam tocadas pelo espírito. Podemos pedir para que a raiva e a confusão não se transformem em ressentimento e vingança. O modo como algumas pessoas russas têm sido tratadas deixa-nos em estado de alerta, e mostra-nos como é importante rezar se queremos ter em nós “os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus” (Fl 2, 5). A sensibilidade de Jesus não é em nós de geração espontânea. É certamente graça gratuita de Deus, mas pede abertura ao Espírito que pode mudar o nosso coração e moldar os nossos gestos.
Rezamos. Deixamos que a nossa solidão seja habitada por Deus. Assumimos sem voluntarismos o desejo de que através de nós a vontade de Deus se cumpra. Reconhecemos no rosto magoado de tantas irmãs e irmãos a presença que nos convoca.
Rezamos e pedimos que a guerra termine em nós, pedimos para que a nossa resposta ao mal seja o bem. Não sabemos quando param os tiros. Sabemos que podemos amar. É para isso que rezamos, para aprender a amar, pedindo o coração de carne que as nossas mãos são incapazes de criar.
Fotografia de Laura Allen – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.