Road To Calvary: moldarmo-nos ao caos

Esta semana, a Brotéria sugere uma série sobre a face humana – e por isso profundamente ambígua – dos anos da guerra civil russa.

Esta semana, a Brotéria sugere uma série sobre a face humana – e por isso profundamente ambígua – dos anos da guerra civil russa.

Em O caminho para o calvário, acompanhamos a vida de duas irmãs de classe alta quando se atravessavam situações dramáticas na Rússia: o final da Grande Guerra, as Revoluções de 1917 e a guerra civil que se lhes seguiu. Pode dizer-se que esta é uma série patriótica, pois estreou em 2017, ano das comemorações do primeiro centenário da Revolução Russa, e é baseada numa trilogia vencedora do prémio Estaline em 1943, de Alexei Nikolaevich Tolstói.

Com a Revolução Russa, muitos homens saídos de uma guerra mundial, na qual lutaram pela Rússia contra alemães e contra franceses, passaram a lutar pela mesma Rússia, mas contra outros russos. A certo ponto as diferenças entre as fações não são claras. Para muitos, as razões para optar por um lado ou outro, antes de serem ideológicas, são o amor ou ódio, interesse e oportunidade. As fidelidades são sujeitas a uma hierarquia em que ser fiel a alguém pode entrar em conflito com a fidelidade a outra pessoa ou a uma causa. E vice-versa. A série ilustra como em situação de guerra as pessoas empobrecem, algumas se tornam selvagens e podem até habituar-se a isso. Parece instalar-se uma nova normalidade: traição, raiva, prepotência, assaltos a casas, a lojas, a comboios, o oportunismo dos anarquistas que minam os planos dos vários lados, o egoísmo do “salve-se quem puder”. Estamos diante de um retrato que nos mostra a divisão do país e a fratura das amizades e das famílias.

A maior parte da população não se envolve ativamente nos conflitos, mas sofre passivamente as suas consequências. A certo ponto, alguém constata que “há alemães à esquerda, Vermelhos à direita, Brancos em frente e Makhno atrás”. Percebemos que os efeitos da guerra são de certa forma democráticos, pois afetam ricos e pobres, camponeses e citadinos, novos e velhos. “Brancos, Vermelhos, somos todos iguais, não há confiança, só ódio”, diz Telegin.

Perante o contraste entre a crueza do conflito e alguns gestos de humanidade, surge uma questão: de onde nasce a bondade? Virá da educação recebida, uma virtude cultivada, ou será inata? Ou será apenas um conjunto de gestos circunstanciais? Talvez depois de ver O caminho para o calvário muitos espectadores fiquem mais conscientes de aspetos da revolução russa que antes desconheciam. É de valorizar que seja escrito e interpretado por russos. Os próprios podem interpretar os factos da sua História tendo o conhecimento interior de quem é herdeiro daquilo que compõe o contexto histórico deste romance.

Além disso, ouvir este drama da História russa na própria língua permite entrar um pouco mais na intimidade de quem o viveu. A língua não é um acessório, a língua faz parte dos acontecimentos. Na série vemos como, com a Revolução, a vida de duas irmãs, até então considerada normal, mudou completamente de um momento para outro, ultrapassando tudo o que alguma vez poderiam ter imaginado vir a viver. Em tempo de crise provocada pela Covid-19, podemos perguntar-nos também o que poderemos dar como certo na normalidade da nossa vida.

 

Género: Ação, Drama, História

Duração: 48 min

País: Rússia

Idioma original: Russo

Produtores: Irina Bark, Susanna Muasen

Distribuição: Netflix

Data de estreia: 27.11.2017

Nº de temporadas: 1

Nº episódios: 12

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.