Redespertar o amor pela leitura

Saborear a verdade da alma humana, tragédias, aventuras, espantos, em romances, poemas, dramas, palavras, silêncios e sons, enraíza um “lugar” jubiloso de encontro, abre a experiência da fraternidade ao dom de si mesmo.

Saborear a verdade da alma humana, tragédias, aventuras, espantos, em romances, poemas, dramas, palavras, silêncios e sons, enraíza um “lugar” jubiloso de encontro, abre a experiência da fraternidade ao dom de si mesmo.

Esta carta do Papa Francisco sobre O Papel da Literatura na Educação (17.07.2024) não surpreende, prossegue na esteira da primeira Exortação Apostólica do seu pontificado: A Alegria do Evangelho (Evangelii Gaudium,  24.11.2013), em que a preocupação pela forma “literária” do anúncio do Evangelho está presente. O Papa desenvolve e sublinha, a determinado passo da Exortação, “a pregação dentro da Liturgia, que requer uma séria avaliação por parte dos Pastores”. E logo a seguir, no mesmo número, afirma com assertividade: “Deter-me-ei particularmente, e até com certa meticulosidade, na homilia e sua preparação, porque são muitas as reclamações relacionadas com este ministério importante, e não podemos fechar os ouvidos” (n. 135). Ainda hoje estas palavras continuam a ser atuais, para que a homilia possa “ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador encontro com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento” (ibid.). A presente carta-mensagem sobre “O Papel da Literatura na Educação” insere-se neste filão pedagógico de A Alegria do Evangelho, principalmente no capítulo III, “O anúncio do Evangelho” (nn. 110-159). Universaliza-o aos anunciadores da verdade e da beleza, que devemos ser todos nós, em todas as circunstâncias. Os “recursos pedagógicos”, de que tratam os nn. 156-159 da Exortação, aplicam-se não só a quem escreve, fala ou prega, mas também a quem lê, escuta e descansa. Língua e linguagem “simples, clara, directa, adaptada” (158) e “se aponta algo negativo, sempre procura mostrar também um valor positivo que atraia, para não se ficar pela queixa, o lamento, a crítica ou o remorso” (159). Tão válido para quem escreve como para quem lê!

A carta-mensagem do Papa Francisco sobre o papel da Literatura na educação visa, em primeiro lugar, o desejo de quem esqueceu o prazer da leitura ou nele nunca foi iniciado. É ela própria, transparente, formosa e graciosa, exemplo de boa literatura. Pretende estimular a convivência, o descanso que faz frutificar a obra, o livro. Saborear a verdade da alma humana, tragédias, aventuras, espantos, em romances, poemas, dramas, palavras, silêncios e sons, enraíza um “lugar” jubiloso de encontro, abre a experiência da fraternidade ao dom de si mesmo.

Estruturada em 44 parágrafos divididos em 8 secções precedidas por uma espécie de prólogo ou introdução, em que o Papa explica o seu primitivo desígnio de endereçar a carta unicamente aos futuros sacerdotes (lembrando-se, talvez, da Evangelii Gaudium), mas decidindo-se, depois, por dirigi-la a todos, situa-nos no coração do tempo que vivemos: “Ao contrário dos meios audiovisuais, onde o produto é mais completo, e a margem e o tempo para “enriquecer” a narrativa ou para a interpretar são geralmente reduzidos, o leitor é muito mais ativo quando lê um livro. De certo modo, reescreve-o, amplia-o com a sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de dramatismo e simbolismo; e assim surge uma obra muito diferente daquela que o autor pretendia escrever. Uma obra literária é, portanto, um texto vivo e sempre fértil, capaz de falar de novo e de muitas maneiras, capaz de produzir uma síntese original com cada leitor que encontra. Este, enquanto lê, enriquece-se com o que recebe do autor, mas isso permite-lhe, ao mesmo tempo, fazer desabrochar a riqueza da sua própria pessoa, pois cada nova obra que lê renova e expande o seu universo pessoal” (parágrafo 3).

” (…) Uma obra literária é, portanto, um texto vivo e sempre fértil, capaz de falar de novo e de muitas maneiras, capaz de produzir uma síntese original com cada leitor que encontra. Este, enquanto lê, enriquece-se com o que recebe do autor, mas isso permite-lhe, ao mesmo tempo, fazer desabrochar a riqueza da sua própria pessoa, pois cada nova obra que lê renova e expande o seu universo pessoal”

Os títulos das secções apresentam-se deveras interpelativos, são convites à viagem por paisagens sedutoras: Fé e cultura; Nunca um Cristo sem carne; Um grande bem; Ouvir a voz de alguém; Uma espécie de ginásio de discernimento; Atenção e digestão; Ver através dos olhos dos outros; O poder espiritual da literatura.

Acho particularmente sugestiva a secção intitulada Atenção e digestão que termina nestes dois parágrafos:

“32. É necessário recuperar formas hospitaleiras e não estratégicas de relacionamento com a realidade, não diretamente orientadas para um resultado; formas nas quais seja possível deixar emergir o infinito excesso do ser. Distância, lentidão, liberdade são características de uma abordagem da realidade que encontra precisamente na literatura uma forma de expressão, não exclusiva, mas privilegiada. A literatura torna-se, então, um ginásio onde se treina o olhar para procurar e explorar a verdade das pessoas e das situações como mistério, carregadas de um excesso de sentido, que só parcialmente se pode manifestar em categorias, esquemas explicativos, dinâmicas lineares de causa-efeito, meio-fim.

33. Uma outra bela imagem para contar o papel da literatura vem da fisiologia do corpo humano e, em particular, do ato da digestão. Neste caso, o modelo é a ruminatio bovina, como afirmavam o monge Guillaume de Saint-Thierry, do século XI, e o jesuíta Jean-Joseph Surin, do século XVII. Este último falava do “estômago da alma” e o jesuíta Michel De Certeau apontava para uma verdadeira «fisiologia da leitura digestiva». Ou seja, a literatura ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo os seus significados e tensões fundamentais”.

Ou seja, a literatura ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo os seus significados e tensões fundamentais”.

São citados, ao longo do texto, no seu corpo e em notas de rodapé, santos, teólogos, místicos, escritores (romancistas e poetas), que nos abrem a leitura para paragens de inquirição e surpresa. O próprio Papa cita-se a si mesmo e à sua experiência de jovem professor de Literatura num colégio jesuíta, quando tinha 28 anos. Quero eu citá-lo também agora, quando, inesperadamente, insere na catequese 7 sobre o discernimento, a propósito da desolação, esta passagem de um livro da Grande Literatura, que parece citar quase de cor:

“Ninguém gostaria de se sentir desolado, triste: isto é verdade. Todos gostaríamos de uma vida sempre jubilosa, alegre e realizada. E, no entanto, isto, além de não ser possível – pois não é possível – também não seria bom para nós. Com efeito, a mudança de uma vida orientada para o vício pode começar a partir de uma situação de tristeza, de remorso pelo que se fez. É deveras bonita a etimologia desta palavra, “remorso”: o remorso da consciência, todos conhecemos isto. Remorso: literalmente, é a consciência que morde, que não dá paz. Alessandro Manzoni, em Os noivos, ofereceu-nos uma maravilhosa descrição do remorso, como ocasião para mudar de vida. Trata-se do célebre diálogo entre o cardeal Federico Borromeo e o Inominado que, depois de uma noite terrível, se apresenta transtornado ao cardeal, que se dirige a ele com palavras surpreendentes: «“Tem uma boa notícia para me dar, e faz-me suspirar tanto?”. “Boa notícia, eu? – disse o outro – Tenho o inferno no coração […]. Diga-me, se o souber, qual é esta boa notícia?”. “Que Deus tocou o seu coração e quer fazê-lo seu”, retorquiu pacatamente o cardeal» (cap. XXIII). Deus toca o coração e vem-te algo dentro, a tristeza, o remorso por alguma coisa, e é um convite a iniciar um caminho. O homem de Deus sabe observar profundamente o que se move no coração” (26.10.2022).

E outra citação muito bela, da sua lavra, como resumo final desta minha nota para converter o esquecido leitor à leitura da boa Literatura: “A nossa tristeza infinita só se cura com um amor infinito” (A Alegria do Evangelho, n. 265).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.