Já foi apresentada no Ponto SJ a ideia de um Rendimento Básico Incondicional (RBI), vista da perspetiva cristã: trata-se de entregar uma quantia modesta de dinheiro paga incondicionalmente a todos os indivíduos numa base regular (por exemplo, mensalmente).
Neste âmbito, realizou-se no passado dia 1 de fevereiro um debate inserido na rubrica do Ponto SJ ‘conversas inquietas’, que pode ser visto na íntegra aqui. Estiveram presentes quatro pessoas com experiência político-partidária: José Luís Carneiro (PS), João Paulo Barbosa de Melo (PSD), José Pureza (BE) e Carlos Pinto (IL).
Não se escondeu, logo no início do evento, uma certa natureza quasi-utópica deste assunto, que, em muitos aspetos, vai contra a corrente de um certo status quo político, económico, laboral e cultural. Sublinhamos, da mesma forma, a convicção de que esta é, também, uma oportunidade encarnada de realizar o Evangelho, principalmente junto dos mais desfavorecidos. Este ponto de partida, porém, não deve ser interpretado como falta de realismo e exequibilidade. Admite-se a ambição da ideia, mas conhecem-se estudos e argumentações que a tornam, obviamente, num sonho porventura realizável.
Salienta-se a oportunidade da temática e o tom (elevado) da discussão, nem sempre patente em debates com intervenientes de vários partidos. Foram elencados, principalmente, argumentos de natureza económica e da própria natureza do trabalho, tipicamente como sendo algo fragilizantes do próprio RBI. No entanto, os proponentes desta iniciativa (que teve bastante adesão, o que, per se, já a justifica e promete futuro) reconhecem autocriticamente que faltou alguém no painel com uma argumentação mais sólida e claramente protetora e defensora do RBI. Neste sentido, convidamos o Gonçalo Marcelo, um membros da Associação pelo Rendimento Básico Incondicional – Portugal (rendimentobasico.pt), a acrescentar alguns parágrafos à discussão, no sentido de reforçar um pouco as razões pelas quais um RBI poderia ser desejável, e quem sabe exequível, ponto de vista que talvez não tenha estado suficientemente representado na discussão*. Sabemos da ingratidão de em tão pouca margem de texto realizar um contraditório e, por isso mesmo, redobramos o nosso agradecimento por esta aceitação. Recomendamos a leitura do livro “Rendimento Básico Incondicional: uma defesa da liberdade”, do qual o Gonçalo Marcelo é coautor e onde são explanados alguns pressupostos filosóficos do RBI.
É de referir que prevemos realizar mais um conjunto de eventos nesta sequência, aqui no Ponto SJ. O próximo deverá acontecer durante a Primavera e versará, especificamente, o valor, os desafios e o futuro do trabalho, no contexto do RBI.
João Paiva e Diogo Morgado Conceição
Contributo de Gonçalo Marcelo
*É de saudar uma discussão sobre o RBI num contexto católico, e que não deixa de invocar, se me permitirem o atrevimento, o elogio das aves do céu, que não semeiam nem ceifam, ou dos lírios do campo, que não trabalham nem fiam. Não será com certeza à toa que em Vamos Sonhar Juntos: O Caminho Para Um Futuro Melhor, o Papa Francisco apela taxativamente a que se explore a viabilidade desta possibilidade, sobretudo num mundo pós-Covid. Com efeito, uma sociedade em que a dignidade seja efetivamente reconhecida em todos, independentemente da atividade que exerçam, eis uma visão que não deveria parecer estranha a qualquer católico.
Colocando porém de lado esta visão de ordem doutrinária ou filosófica, e assistindo ao dia-a-dia do debate político, não será porventura estranho que, sendo sempre as políticas públicas uma discussão sobre prioridades em contexto de recursos finitos, o discurso político tenda a ser – digamo-lo eufemisticamente – prudente em relação a uma possibilidade que pareça exigir montantes tão avultados para a sua execução. E assim se descarta facilmente o RBI como uma ilusão, ainda que doce, e se agita o fantasma da substituição do Estado Social.
É preciso dizer, sucintamente, que a esmagadora maioria dos muitos milhares de apoiantes do RBI em todo o mundo defendem-no como um aprofundamento do Estado Social, e não como a sua substituição; e que esta possibilidade, aliás, nem sequer teria cabimento em Portugal, por razões políticas (o apego dos cidadãos ao Estado Social e a sua associação à democracia) e constitucionais: nunca o Estado poderia simplesmente deixar de lado a provisão pública nos domínios da Saúde e da Educação. De maneira que podemos discutir se um RBI seria desejável ou exequível; mas um RBI ultraliberal em Portugal, esse, podemos desde já declarar impossível.
Quanto à magna questão do financiamento, poder-se-iam sempre apontar alguns caminhos possíveis para (algum) alívio da preocupação orçamental, desde a poupança com a eventual substituição das pensões ou prestações sociais de valor menor ou igual ao RBI;, à possibilidade de se começar pela atribuição de um valor não apropriadamente básico mas ainda assim incondicional (por exemplo: 200 euros em vez de 500);, às eventuais fontes de financiamento; ou ainda ao facto de, pelo estímulo à economia por via do aumento do poder de compra dos mais pobres, ele poder não ser tão dispendioso quanto as previsões mais pessimistas…
Mas, na minha opinião, o foco da discussão não tem de, nem deve primariamente, ser esse. Para quem é europeísta, as vantagens de uma harmonização da proteção social europeia por via da introdução de um RBI sob a forma de eurodividendo (como propõe Van Parijs) parece óbvia: tornaria claro, de forma muito direta, o benefício de uma UE que colocasse a proteção social dos cidadãos como prioridade. Para quem acha chocantes a pobreza, a desigualdade e a precariedade em Portugal, não é preciso argumentar muito para se perceber as vantagens que uma rede de segurança como o RBI proporcionaria; e, para voltar ao início, para quem reconhece a dignidade humana como uma característica universalmente partilhada, então, a medida radical de distribuição de um mínimo de poder económico por todos, sem a ameaça da armadilha da pobreza, só poderá ser vista como um bem inestimável.
Se o RBI será ou não um dia possível, o futuro o dirá. Se eventualmente algum dia se implementar, quem sabe se não será olhado pelos seus beneficiários com o mesmo apego e estima com que hoje se olha para as férias pagas ou a redução dos horários de trabalho como conquistas inestimáveis do Estado Social. Por ora, discuti-lo, ainda que num horizonte necessariamente longínquo no contexto de um pequeno Estado endividado e sujeito às exigências do Tratado Orçamental – discuti-lo à escala da zona Euro, e eventualmente financiado pelo IVA como defende Van Parijs, seria outra história – tem talvez a virtude de nos colocar a olhar para alternativas pensáveis, ainda que não óbvias nem imediatas na sua concretização. Nem que seja só por isso, já a discussão terá valido a pena.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.