Ratzinger: o poder da não neutralidade

Bento XVI é um pensador radical porque nunca quis ser imparcial, na pior asserção da palavra, pondo a descoberto tanto o perigo de uma posição desapaixonada, como o engano patente na idolatria do apartidarismo.

Bento XVI é um pensador radical porque nunca quis ser imparcial, na pior asserção da palavra, pondo a descoberto tanto o perigo de uma posição desapaixonada, como o engano patente na idolatria do apartidarismo.

“Os dois Burkes”. Na história do pensamento político ocidental é esse o nome dado à discussão que visa explorar a (in)coerência do político e parlamentar irlandês Edmund Burke no que a temáticas revolucionárias diz respeito. Em resumo: o que pensar de alguém que apoiou enfaticamente a revolução americana – louvando o valor da liberdade – e passados cinco anos reprovou duramente a revolução francesa – pondo em dúvida a importância dessa mesma qualidade?

Dois séculos depois, diante da morte do Papa Ratzinger, esta pergunta mudou de protagonista, mas não se transformou de forma fundamental. Quem terá sido, afinal, este homem que foi um dos maiores pensadores da reforma IIº Concílio do Vaticano, chegou a ser conhecido como “Gottes Rottweiler”, e acabou visto como um “conservador” fracassado, como afirmava o editorial de sábado do El País? A incoerência, no fim de contas, é de quem? Nossa ou de Bento XVI?

Neste contexto pode parecer estranho mas o tímido Joseph Ratzinger foi, possivelmente, o único teólogo do séc. XX a ascender a um estatuto semelhante ao de uma pop star: com uma vasta “legião de fãs”, viu o seu pensamento muitas vezes reduzido a pequenos slogans, tal como a banda que enche estádios, mas da qual a multidão só se recorda dos dois singles mais famosos; foi marginalizado por uma faixa de ouvintes que, ou nunca lhe perdoaram gestos mais “excêntricos”, ou recordaram, até ao fim, com nostalgia dolente, os tempos iniciais, “acústicos”, onde acreditavam estar a sua “música mais pura”; viu a divulgação do seu contributo teológico bater recordes de geografia, popularidade e rapidez, mas teve o seu pensamento, tantas e tantas vezes, descontextualizado, deturpado e manipulado, inclusive pelos seus mais próximos, do mesmo modo que detentores de grandes sucessos veêm as suas letras rapidamente usadas em discursos de intenção política duvidosa.

Exemplo lunar disto mesmo é o lugar-comum em que hoje se tornou a crítica à “ditadura do relativismo”, a quem se recorre, em surdina, sempre que se quer falar de uma sociedade leviana, titubeante e sem rumo, recorrendo-se, para o efeito, da homilia que o então cardeal Ratzinger proferiu na Missa Pro Eligendo Romano Pontifice em 2005.

Talvez, por isso, seja preciso ampliar o campo de análise para perceber o que esteve e está realmente em causa, neste caso concreto. Para isso sugiro recorrermos a um filósofo, também ele de língua alemã, raramente ligado ao pensamento do Papa germânico: Karl Popper. Em A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, Popper contrapõe o conceito de “sociedade aberta” – espaço para a liberdade de crítica – e de “sociedade fechada” – lugar de tabus imunes à avaliação. Daí, o filosofo nascido em Viena irá concluir que as tensões dramáticas e terríveis vividas no séc. XX – que Ratzinger tão intensamente sentiu na pele – são, em grande medida, mutações e consequência de um longo processo de abertura gradual das sociedades tribais e coletivistas do passado, no qual o modelo da disputa entre a civilização marítima e democrática de Atenas e a tirânica e anticomercial de Esparta é o paradigma clássico por excelência.

Ora, a questão, quer para Ratzinger, quer para Popper é que este processo pode atingir um ponto de autodestruição. Num artigo de 1979, chamado “A Europa: uma herança vinculativa para os cristãos”, o teólogo alemão afirmou, inclusivamente: “a pluralidade de valores, legítima e europeia, crescerá visivelmente na direção de um pluralismo do qual qualquer abordagem moral do direito e qualquer abordagem pública do sagrado e do temor de Deus como valor coletivo será cada vez mais excluída. E perguntar por isto parecerá, para muitos, uma ofensa à tolerância e a uma sociedade fundada apenas na razão”.

Por isso, no capítulo 5, do volume I, de A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, Popper, ao denunciar o que chama naturalismo ético, que tende a reduzir normas a factos, volta a encontrar-se com Ratzinger que, num texto de 1987 – “Ordem cristã na democracia pluralista? Sobre a indispensabilidade do cristianismo no mundo moderno” – afirmava que “não era possível entender a razão da dimensão moral se reduzirmos a razão a um cálculo exato”. Em resumo, o que ambos põem em causa é a pretensão de “decretar a inexistência de valores morais para além daqueles contidos nas normas legais”, sob pena de deixar de ser operativo falar de liberdade e responsabilidade moral, dado que as leis se tornam elas mesmas arbitrárias.

O que ambos põem em causa é a pretensão de “decretar a inexistência de valores morais para além daqueles contidos nas normas legais”, sob pena de deixar de ser operativo falar de liberdade e responsabilidade moral, dado que as leis se tornam elas mesmas arbitrárias.

Sob outra perspetiva, quando, por exemplo, Alexis Tocqueville escreveu Da Democracia na América, baseado na sua experiência de enviado por parte do governo francês aos EUA para estudar o sistema prisional americano no tempo do presidente Andrew Jackson, percebeu duas coisas: (1) que o conceito de independência, confundido com autossuficiência, leva ao enfraquecimento da liberdade pública, porque torna o indivíduo mais escravo do Estado; (2) que as sociedades livres só existem quando assentem numa moral pública, porque, nas suas palavras: “o despotismo pode dispensar a fé, mas a liberdade não”. Para Tocqueville, o sucesso da democracia depende da cooperação entre “o espírito da liberdade” e o “espírito da religião”, entendido aqui como dimensão de alteridade e de rompimento com a mesmidade. Popper, inspirado neste contributo, indicará, como decisivo, para o futuro da “sociedade aberta” a conciliação entre a “existência objetiva da verdade”, e a “existência do conhecimento subjetivo da verdade”, também baseada na conhecida “assimetria dos enunciados universais”. E em 1987, no texto já citado, o futuro Bento XVI falava de uma perigosa “relativização do ethos” público – o avô da expressão “ditadura do relativismo” – e, mais tarde, em 1992, numa reflexão com os bispos eslovacos, referia: “a atenção à liberdade de cada indivíduo parece-nos hoje consistir essencialmente no fato de que o Estado não pretender resolver o problema da verdade: a verdade – também a verdade sobre o bem – não parece cognoscível na esfera social”.

Simplificando: Tocqueville, Popper e Ratzinger concordariam com Jorge Palma quando este canta: “a independência é uma besta / que dá cabo do desejo”.

Ora, é certo que, no máximo, é possível estender esta análise até à conclusão de o que falta às sociedades ocidentais são pontos de referência seguros, claros e distintos, que procurem fazer face ao “enfraquecimento da civilização europeia”. Mas o aprofundamento da proposta deixada por Bento XVI com a denúncia do relativismo levanta outro caminho. Em primeiro lugar, ao indicar, o que hoje não é de menor importância, que sociedades democráticas só são possíveis em sociedades plurais, dinamitando as recentes tentativas de democracias não liberais, mas salvaguardando, de igual modo, que a crítica ao relativismo é paralela à tentativa de salvaguardar o pluralismo da sociedade e não o contrário. Em segundo lugar, porque evidencia que o tecido social se pode suicidar sem o sentido do nós-comum, tal como tem alertado o Papa Francisco, ainda para mais num contexto crescente de divulgação de factos alternativos raramente filtrados. Em terceiro, ao mostrar que a comunidade de que fazemos parte não é uma comunidade aleatória e causal, mas uma comunidade cuidada e cuidadora, pensante e pensável. A questão, aqui, é saber qual dos caminhos de questionamento conserva a força geradora capaz de comover a razão.

Ainda assim, o poder do pensamento de Joseph Ratzinger terá residido no facto de não ser um pensamento neutral. Bento XVI é um pensador radical porque nunca quis ser imparcial, na pior asserção da palavra, pondo a descoberto tanto o perigo de uma posição desapaixonada, como o engano patente na idolatria do apartidarismo. Mas não sendo um pensador neutral e simplesmente espetador, não o foi de outra maneira. Porque se a hiper-sensibilidade é, também ela, uma falta de sensibilidade, o tribalismo intelectual é, em certo sentido, uma rendição. Ratzinger nunca cometeu esses erros. Aí ser possível sustentar que, na sua obra, quer o contributo para o Vaticano II, quer a insistência nos malefícios da ditadura do relativismo, coincidem num ponto: o desejo de uma “sociedade aberta”. Infelizmente o maior perigo contra o qual a obra de Bento XVI terá que lutar a partir de agora continuará a ser a defesa contra as múltiplas tentativas que tendem a fazer dela um “pensamento folhetim”, descaracterizado e isolado. Porque se é certo que nenhum contributo ou método teológico existe sem insuficiências, são estas abordagens à obra de Ratzinger, tantas vezes feitas em estilo de homenagem, que a tornam mais incoerente e enfraquecida. Afinal, Bento XVI confirmou sempre uma frase brilhante de Samuel Úria: “saber complicar é uma prova de amor”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.