O tema da criação de lugares para a celebração da fé cristã em comunidade não é novo, tem vinte séculos. Poderíamos dizer que bastaria uma “sala no andar de cima” (Mc 12,15) como aquela onde Jesus celebrou a última ceia. É verdade, mas o alargamento das comunidades e o desenvolvimento do ritual litúrgico implicou a readequação dessa sala, uma arquitetura, um lugar na cidade, e assim, igrejas com valor funcional e simbólico. A liturgia cristã e o seu mistério tornaram-se, ao longo da história, uma fonte de inspiração para a arquitetura e para as artes e, por sua vez, estas tornaram-se importantes mediações simbólicas da celebração da liturgia. A história das relações entre a liturgia, a arquitetura e as artes é muito rica e variada. Ensina-nos que sempre existiu uma grande flexibilidade na adaptação às circunstâncias de cada momento: às diversas teologias, à compreensão (de si) da própria Igreja, à noção do sacerdócio e dos sacramentos que cada época vai elaborando, assim como às circunstâncias geográficas, sociais, culturais e devocionais. Esta dinâmica deriva da superação de dificuldade e do desejo de garantir uma sempre renovada qualidade de celebração da fé, uma plena vivência e participação no mistério cristão. Esta intenção foi retomada, nas suas grandes linhas orientadoras, pelos concílios da Igreja que implementaram reformas litúrgicas. Os último dois foram: o Concílio de Trento há vários séculos (1545-1563), e o Concílio Vaticano II, há sessenta anos (1962-1965).
A problemática atual
O cristianismo resulta da tensão entre o núcleo da revelação em Jesus Cristo e as suas diversas expressões históricas, geográficas e culturais. A dinâmica da tradição cristã consiste na transmissão da sua vitalidade às culturas, que implica simultaneamente nelas revitalizar as suas mediações simbólicas e rituais. Neste sentido, não podemos compreender a problemática atual da arquitetura e das artes para a liturgia sem considerar o Concílio Vaticano II, onde desagua a revitalização da teologia cristã da primeira metade do século XX, na sequência dos movimentos litúrgico, bíblico, patrístico, etc. Ou sem compreender o profundo reajuste civilizacional refletido e protagonizado pelo movimento moderno da arquitetura, ou a problemática do movimento de arte sacra do século XX que tentou superar o pietismo do século XIX. Apesar de todas estas transformações civilizacionais, o modelo tridentino da igreja-edifício e o seu paradigma de arte sacra persistem enraizados no subconsciente coletivo, e o que, em parte, está em jogo é que à imagem das igrejas corresponde uma imagem de Igreja. Em Portugal, para além do acolhimento do movimento litúrgico e da reforma subsequente pelos Beneditinos de Singeverga e pelo Seminário dos Olivais, o debate e a prática da arquitetura e das artes para a liturgia fez-se em torno do MRAR – Movimento de Renovação da Arte Religiosa, com alguma continuidade no SNIP – Secretariado das Novas Igrejas do Patriarcado de Lisboa, hoje ambos extintos. Para além das transformações imediatas após o último concílio – a revisão dos rituais, o enriquecimento da liturgia, da palavra e a valorização do ambão, a implementação das línguas vernáculas, o sentido renovado da assembleia e da sua participação como sujeito ativo da liturgia, algum reajuste da sua relação com altar e o retomar da comunhão frequente – a experimentação de práticas litúrgicas renovadoras aconteceu apenas pontualmente. A reorientação do celebrante principal versus populum foi marcante, mas a posição e desenho da presidência continua na maioria dos casos irrefletida. Dois casos paradigmáticos de um aggiornamento consciente mais que automático, já com alguma sedimentação, felizmente há alguns mais, são a comunidade da Serra do Pilar, no Porto, e a Capela do Rato, em Lisboa.
O apelo da Desiderio desideravi
Recentemente, o Papa Francisco apelou à necessidade e urgência de retomar a reforma litúrgica através da Carta Apostólica Desiderio desideravi: “Com esta carta gostaria simplesmente de convidar toda a Igreja a redescobrir, guardar e viver a verdade e a força da celebração cristã.” (DD, 16). Temos a responsabilidade eclesial de responder a este desafio. De facto, um desconhecimento da reforma, ou uma compreensão e aplicação superficial da mesma, conduz à rotina de alguns, e à nostalgia do passado ou ao afastamento de outros. “Como crescer na capacidade de viver em plenitude a ação litúrgica? Como continuar a surpreender-nos com o que acontece na celebração diante dos nossos olhos? Precisamos de uma séria e vital formação litúrgica.” (DD, 31). O Papa reconhece que esta revitalização passa pela mediação simbólica: “A liturgia é feita de coisas que são exatamente o oposto de abstrações espirituais: pão, vinho, azeite, água, perfume, fogo, cinzas, pedra, tecido, cores, palavras, sons, silêncios, gestos, espaço, movimento, ação, ordem, tempo, luz.” (DD 42). Tratam-se de símbolos radicais a que a arquitetura e as artes dão forma e reinterpretam em permanência para que esses significantes se mantenham vivos e atuais. Por um lado, é necessário um trabalho de formação litúrgica “o homem deve voltar a ser de novo capaz de símbolos.” (DD 44), por outro, é necessário abrir o círculo de conforto de uma linguagem eclesial gasta aos homens e mulheres nossos contemporâneos, destinatários da pertinência universal da fé cristã, através de uma linguagem artística não exclusiva, antes invitatória, viva, apostólica.
A nova Comissão de Arquitetura e Artes para a Liturgia.
Podemos entender esta iniciativa como uma resposta do Secretariado Nacional de Liturgia a este apelo e necessidade no que diz respeito à arquitetura e às artes. Qual a sua missão? A Comissão propõe-se organizar anualmente um encontro de referentes ou delegados diocesanos e uma Jornada aberta a todos. Há, por um lado, o desafio prático de criar uma rede de informação e de relações a nível nacional entre os protagonistas e disciplinas intervenientes nesta matéria: liturgistas, juristas e canonistas, arquitetos e artistas, historiadores de arte, conservadores e comissões de arte sacra. Pretende-se gerar uma escuta mútua, reflexão e diálogo em torno da construção de novas igrejas ou de intervenção em igrejas existentes e históricas. Por outro lado, há um trabalho de formação mais abrangente, de divulgação da reflexão atual e de boas práticas nas relações da liturgia com a arquitetura e as artes, tanto no âmbito do património como da criação contemporânea. Finalmente, está em construção um site, onde esta informação possa encontrar um lugar permanente e atualizado online. Este texto gostaria de despertar o interesse pelo tema, e aguçar o desejo de participação nas primeiras Jornadas, a realizar em Fátima, no dia 9 de novembro, sob o tema: Arquitetura e Artes para a Liturgia: que lugares?.
Este texto gostaria de despertar o interesse pelo tema, e aguçar o desejo de participação nas primeiras Jornadas, a realizar em Fátima, no dia 9 de novembro, sob o tema: Arquitetura e Artes para a Liturgia: que lugares?.
Linhas de orientação e de questionamento
Uma comissão nacional é necessariamente um lugar de cruzamento de diversas sensibilidades litúrgicas e artísticas. À partida isso é positivo. É na troca de impressões e no aprofundamento das questões que procuramos, por vias diversas e face aos desafios do nosso tempo, uma maior qualidade da arquitetura e das artes para a liturgia. Nesse sentido, antecipo, caros pares e leitores leigos, um ponto de vista sobre alguns temas e orientações constitutivos desta problemática:
(i) Reunir a assembleia. O propósito de construir uma igreja é o de reunir uma assembleia para a celebração da fé e lhe dar lugar e presença na cidade secular, é também o de criar um ambiente de recolhimento e oração, evocar o mistério de Deus que os sinais litúrgicos hão de explicitar, e de servir as demais necessidades de uma comunidade paroquial. Do ponto de vista da reforma litúrgica, é prioritário compreender a unidade da assembleia, corpo de Cristo, como sujeito sacramental da celebração, em torno aos polos da ação litúrgica que lhe dão sentido e identidade cristã. Isto é, ultrapassando a separação secular entre o clero e o povo enquanto subconsciente coletivo resistente à teologia do Povo de Deus em Comunhão.
(ii) Arquitetura. Ao tratarmos da igreja-edifício estamos a tratar de arquitetura, e do desejo de uma arquitetura de qualidade para as nossas igrejas. É um tema da máxima importância. Uma arquitetura de qualidade implica uma autonomia própria enquanto disciplina técnico-humanística, que inclui uma profunda compreensão e comunicação da identidade da instituição humana e do programa que edifica. No caso do edifício-igreja essa compreensão aprofundada abrange um conhecimento dos ritos litúrgicos e do seu sentido, dos polos de ação, das dinâmicas de movimentação e da sua organização espacial tanto funcional como simbólica. Tudo isto compete aos arquitetos, não a todos, mas àqueles que deem provas de serem capazes de se interrogar acerca do que é uma igreja, e que identidade devem ter as nossas igrejas hoje. Dele se requer uma atitude erudita face à tão rica tradição da arquitetura cristã, e uma escuta humilde dos parceiros e consultores, liturgistas, comissões de arte sacra, a comunidade beneficiária, etc., e ainda, a responsabilidade inerente à sua profissão traduzida ultimamente pela assinatura de um projeto.
Ao tratarmos da igreja-edifício estamos a tratar de arquitetura, e do desejo de uma arquitetura de qualidade para as nossas igrejas. É um tema da máxima importância. Uma arquitetura de qualidade implica uma autonomia própria enquanto disciplina técnico-humanística, que inclui uma profunda compreensão e comunicação da identidade da instituição humana e do programa que edifica.
(iii) Depuração e “nobre simplicidade”. Frequentemente, a prioridade na reconfiguração dos espaços litúrgicos e da sua atmosfera em igrejas existentes é a depuração dos excessos decorativos. A saturação decorativa confunde a perceção dos símbolos litúrgicos fundamentais, frequentemente imersos em camadas devocionais acumuladas ao longo do tempo. Na reabilitação de igrejas existentes, ou na construção de igrejas novas é válida a noção de “nobre simplicidade”[1] utilizada na Introdução Geral ao Missal Romano (IGMR) em continuidade com o espírito da constituição para a liturgia Sacrossanctum Concilium. Trata-se de uma noção tão rica e profunda como difícil de definir, porque remete, não para uma compreensão intelectual, mas para uma educação da sensibilidade no sentido mais profundo de uma inteligência das formas, na sua materialidade e conteúdo espiritual. Se, por um lado, essa nobre simplicidade pode ser imediatamente apreendida, por um espírito simples ou cultivado, por outro, necessita de conhecimento e experiência especializados para ser alcançada, para que seja o caráter dominante da liturgia e da igreja-edifício. Nas novas igrejas, a “nobre simplicidade” é propriamente um desafio à arquitetura, relativo, portanto à qualidade e caráter das formas e da atmosfera ambiente, pela modulação do espaço e da luz, mas aplica-se também, sem descorar a sua densidade teológica e presencial, aos equipamento litúrgicos: altar, ambão, presidência, pia batismal, etc., ao programa iconográfico, às vestes e alfaias, no seu desenho, cores e materiais, garantindo o primado do sinal e objeto da ação litúrgica sobre a decoração.
(iv) Diversidade na unidade. Neste assunto, como na vida cristã em geral, a regra existe para configurar uma realidade viva que a ultrapassa. A história das formas do edifício-igreja e da organização do espaço litúrgico constituem um rico e variado depósito da tradição que, com base nos rituais vigentes, os arquitetos e agentes litúrgicos devem adequar a contextos concretos. A solidez e simplicidade do rito romano, e a unidade da liturgia universal da Igreja, resistem à adaptação de circunstâncias extraordinárias ou contextos institucionais diversos, como colégios, centros universitários, campos de férias, desde que haja uma busca permanente de adequação ao mistério litúrgico celebrado, e a possibilidade de uma maior participação ativa por parte da assembleia. Assim como um músico interpreta uma partitura dando-lhe vida, a arquitetura e as artes para a liturgia pedem um exercício espiritual semelhante.
(v) A arquitetura e as artes procedem à liturgia. Outra formulação contundente da IGMR[2] é: “Que a Igreja procure sempre o nobre serviço das artes”. A partir daqui, a ideia das ‘artes ao serviço da liturgia’ é muito repetida no sentido, nem sempre justo, de um serviço serviçal (heterónomo), mas que não deve ser entendido como um serviço extrínseco no qual a arquitetura e as artes, perdendo a sua autonomia artística, perderiam também a sua dignidade e nobreza. Pelo contrário, as artes litúrgicas procedem por si mesmas à liturgia, no sentido da ação e não apenas como uma adjetivação dignificadora ou embelezadora, não só dispõe a assembleia, sujeito sacramental, como participa da própria sacramentalidade da liturgia. Sem prejuízo da autonomia da arte e do artista, antes pelo contrário, o que sai do trabalho do artista consciente de modelar o mistério, atravessa a sua subjetividade sob a forma de uma necessidade interna que procede e visa algo que o transcende. É pela própria função estética que as artes cumprem a sua ministerialidade, mais que por uma submissão externa ou codificação objetiva.
Pelo contrário, as artes litúrgicas procedem por si mesmas à liturgia, no sentido da ação e não apenas como uma adjetivação dignificadora ou embelezadora, não só dispõe a assembleia, sujeito sacramental, como participa da própria sacramentalidade da liturgia.
O que seria um povo sem artes?
O cristianismo tem um património artístico de vinte séculos, poderia viver dessa herança, continuando a ter belas igrejas e obras de arte. Dadas a dificuldade da arte do nosso tempo em tratar temas especificamente cristãos, alguns autores propuseram uma moratória, uma espécie de suspensão da criação artística para a liturgia, até ao advento novos tempos, ao eventual regresso dos artistas à religião. Não tem sido esta a posição do magistério recente. O Papa Paulo VI, pediu perdão aos artistas pelo seu abandono recente por parte da Igreja e insistiu em retomar a amizade e a colaboração.[3] O Papa João Paulo II, que escreve uma carta aos artistas na última Páscoa do segundo milénio, aponta as artes um verdadeiro “lugar teológico”.[4] Há expectativas de que a frescura do olhar dos artistas renove a representação dos temas cristãos, o Papa Bento XVI fala de uma beleza que fere como uma seta e nos acorda.[5] Há também uma consciência de que a dimensão espiritual da arte não se restringe à iconografia confessional nem à mera subjetividade do artista, mas traz ao visível a profundidade do mistério. Numa perspetiva pastoral dialógica, senão mesmo missionária, a arte não é um veículo de transmissão de uma mensagem que lhe é anterior, mas a expressão do mistério, da beleza, da verdade, do sentido, que a todos interpela. Neste sentido, não há arte cristã, nem arte sacra, nem arte litúrgica viva sem o denominador comum de uma arte viva. Se a comunidade cristã desistisse dos artistas do seu tempo estaria a romper com a Tradição, certamente a fechar-se à voz do Espírito que sopra onde quer, e a incumprir a sua vocação universal. Um povo sem arte tornar-se-ia um povo do livro e da lei, mas sem corpo e sem vida.
Referências:
[1] IGMR, Capítulo V, Disposições gerais do lugar sagrado, nº12.
[2] IGMR: Introdução Geral ao Missal Romano, texto introdutório ao Missal.
[3] Paulo VI, Homilia, missa dos artistas, Capela Sistina, 1964. https://www.vatican.va/content/paul-vi/es/homilies/1964/documents/hf_p-vi_hom_19640507_messa-artisti.html.
[4] João Paulo II, Carta aos artistas, 1999, § 11, https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1999/documents/hf_jp-ii_let_23041999_artists.html.
[5] Bento XVI, Encontro com os artistas, Capela Sistina, 2009. https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2009/november/documents/hf_ben-xvi_spe_20091121_artisti.html.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.