Há momentos e acontecimentos que me fazem refletir sobre duas condições que considero estruturantes na minha vida de Fé. A primeira é o reconhecimento da extraordinária liberdade com que vivemos, conscientes da nossa condição de filhos de Deus. Uma liberdade que conheceu amarras, que foi perdida e conquistada em tantos momentos da história da Igreja, mas cujas limitações vejo sempre situadas no lado exterior da vida. No interior, onde se joga na intimidade da razão e do coração, fomos e somos absolutamente livres, apenas presos pela descoberta do Amor e por tudo o que esse Amor pode implicar, pedir ou esperar.
Ao dia de hoje, sei que devo rezar todos os dias, participar na celebração da Missa ao Domingo, confessar-me, viver com particular cuidado o Natal e a Páscoa, partilhar do que ganho com o esforço do meu trabalho… dando mais passos na vida da Fé, devo retirar-me ao menos uma vez por ano, procurar uma direção espiritual que me ajude a avançar, oferecer do meu tempo à vida da minha comunidade sem nada pedir em troca, construir comunhão. Devo ler os documentos da Igreja, aprofundar o estudo da Palavra. E a lista podia continuar, neste esforço de corresponder a tanto bem que me é dado. Mas na verdade, posso não fazer nada disto e continuar a comungar todos os Domingos, a opinar em todos os palcos disponíveis, a reivindicar a minha condição de católica. Porque a liberdade com que vivemos a nossa Fé assim o permite.
A segunda condição é a certeza do encontro prometido, face a face, com Nosso Senhor. A certeza do mistério do céu, tantas vezes anunciado como já vivido aqui na terra, mas tantas outras, confirmado na morte que nos espera. Se encontramos o céu aqui, se construímos o céu na vida de todos os dias, ainda assim consola-me pensar que no dia da minha morte tudo será diferente e me espera um encontro de eternidade. Um encontro que pressupõe um julgamento, misericordioso, cheio de compaixão, capaz de tudo o que não somos capazes, mas justo. E tocam na minha memória as palavras de Jesus no anúncio da urgência de mudar de vida; as palavras de Jesus na cruz, confirmando o paraíso a um malfeitor; as palavras de Jesus pedindo perdão para os que desconheciam o que faziam.
e encontramos o céu aqui, se construímos o céu na vida de todos os dias, ainda assim consola-me pensar que no dia da minha morte tudo será diferente e me espera um encontro de eternidade.
Mas perante tanto que vemos e ouvimos, sinto ser legítimo pensar se vivemos conscientes desse momento de face a face. Se acordamos e nos deitamos tranquilos, desconhecendo o dia e a hora desse encontro, mas desejosos desse olhar… Anunciamos o perdão ilimitado de Deus, a imensa compaixão anunciada pelo Filho, mas seremos verdadeiramente movidos pelo temor a Deus, que não nos amedronta, mas nos pode salvar? As perguntas inquietam-me. Qual será o olhar de Jesus para os que destroem, arrebanham vidas e poder, para os que dividem e cheios de si próprios anunciam verdades e salvações? A quem muito se dá, muito será pedido. Esta afirmação sempre me emudeceu. Não porque me sinta na posição de quem muito recebeu, mas porque me afirma a certeza das perguntas de Deus.
A liberdade e eternidade guiam-me todos os dias pelo caminho da descoberta da presença de Deus, de Jesus Vivo, do Espírito que me leva e traz. Entendo que a celebração da Eucaristia é esta presença, esta Vida, este sopro que nos conduz. E tudo o que fizermos e dissermos que nos separe, que exalte gostos pessoais, que nos coloque o olhar nas posses do mundo, nas fragilidades de uns e na força de outros, que nos permita julgamentos pessoais e coletivos, tudo o que insistirmos em tornar glorioso, aos olhos das ambições de poder, de riqueza e duma proclamada santidade, tudo isto, pressinto que nos distancia do céu, da promessa da eternidade.
Ser digna desta promessa, quando a memória me fala de homens e mulheres que morrem por Jesus, na maior pobreza e simplicidade, afasta-me irremediavelmente de solenidades faustosas, de rituais majestáticos, de sonhos de glória e poder. Somos filhos de um Deus que se revelou na pobreza de Belém, na dureza da vida dos homens do mar, na vergonha da Cruz. Que Deus me ajude a viver a liberdade que me dá todos os dias, com os olhos postos no céu.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.