(Texto para ir lendo e saboreando, repetindo interiormente o que mais toca em forma de oração e ao ritmo de uma respiração pausada).
Durante todo o ano somos submetidos a ritmos exigentes, de certo modo maltratados por uma alimentação desleixada, stressados pela falta de sono, pela carga de responsabilidades que facilmente podem asfixiar a bondade, a verdade, a beleza e a unidade da vida. Ao mesmo tempo convivemos com a certeza, como adverte Luciano Manicardi, de que «não é na profundidade que nos afogamos, mas na superficialidade das coisas». Por tudo isto, andamos inquietos e na expectativa («tender para») até encontrar o devido repouso, sentido e realização… e desejamos recuperar a liberdade, a ordem e a beleza. Na verdade, o desejo tem a ver com a beleza, como o amor; é gratuidade pura. Não produz a água, o sol, o ar, o vento, a pessoa amada, etc., simplesmente as acolhemos, como se tratasse de um “ofertório” do Senhor da vida:
“Tudo que por ti vi florescer de mim
Senhor da vida
Toda essa alegria que espalhei e que senti
Trago hoje aqui
Todos estes frutos que aqui juntos vês
Senhor da vida
Eu em cada um deles e em mim
Todos teus fiéis, ponho a teus pés
Consentistes que minha pessoa
Fosse da esperança um teu sinal
Uma prova de que a vida é boa
E de que a beleza vence o mal
Tudo que se foi de mim, mas não perdi
Senhor da vida
Os que já chorei e os que ainda estão por vir, oferto a ti”
(«Ofertório» de Caetano Veloso)
Neste tempo de Verão de relação connosco, com os outros e com Deus vemos melhor a nossa vida espiritual, a vida interior. Primeiramente, escutamos melhor o nosso corpo, damos-lhe mais atenção, deixando-o viver, respirar, dormir, mexer ao seu ritmo. Pouco a pouco vamos tornando-nos sensíveis ao invisível e descobrindo a imensidão da realidade que é muito mais do que aquilo que se vê!
A verdadeira interioridade começa com o recolhimento do corpo, que conduz a tempo de contemplação e de busca da sabedoria, que nos reconfigura como profetas da alegria e da esperança. Isto porque o nosso corpo está prometido à ressurreição, ou seja, a parte da nossa personalidade que se constrói através dos nossos laços.
Paulatinamente, a oração conduzir-nos-á à beleza do mistério d´Aquele que já nos encontrou e «nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19), experimentando uma “vida nova” (Rm 6,4), a partir de um olhar, um gesto, uma palavra, uma presença mais atenta e bondosa.
Por fim, aproveitemos este tempo de repouso para não somente bronzear e tonificar o corpo, mas também para educar o nosso corpo “espiritual” a sermos responsáveis pelos outros. Uma vez que fomos alcançados por Cristo, ficamos habilitados para amar uns aos outros (1 Jo 4, 11) e a salvar pela beleza e pela bondade!
Que as palavras de Charles Péguy no Mistério da caridade de Jona d´Arc possam ser como um caroço de azeitona na boca na nossa oração diária: «Precisamos de chegar juntos ao Bom Deus. Precisamos de nos apresentar juntos. De nos salvar juntos. Não podemos chegar até ao Bom Deus uns sem os outros. […] O que diria Ele se chegássemos uns sem os outros?»
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.