Proposta 4 – Ser herói ou ser santo?

Nesta quarta proposta das Férias com Deus, o jesuíta Gonçalo Costa lembra-nos que para ser santo (ou ser herói) é preciso estar atento. Um dia o Senhor vai passar e chamar-nos. Será a nossa oportunidade e só saberemos se formos com Ele.

Nesta quarta proposta das Férias com Deus, o jesuíta Gonçalo Costa lembra-nos que para ser santo (ou ser herói) é preciso estar atento. Um dia o Senhor vai passar e chamar-nos. Será a nossa oportunidade e só saberemos se formos com Ele.

Jesus passava por ali…

«– Quatro ou cinco momentos.

– Desculpa?

– Quatro ou cinco momentos, é tudo o que é preciso!

– Para…?

– Ser um herói. Todos acham que é um emprego a tempo-inteiro: acorda um herói, escova os dentes um herói, vai trabalhar um herói. Não é verdade! Ao longo de uma vida há apenas quatro ou cinco momentos que realmente contam. Momentos em que te oferecem uma escolha: fazer um sacrifício, superar um defeito, salvar um amigo. Poupar um inimigo. Nestes momentos, nada mais interessa».

Este diálogo, trocássemos nós herói por santo, poderia estar nalgum desses livros de espiritualidade. Não desfazendo isso, o que lá diz é herói e trata-se de uma das cenas finais do bem-conhecido filme distribuído pela 20th Century Fox, Deadpool (2016). Notemos, claro, que talvez todos os santos sejam heróis, mas nem de perto todos os heróis são santos – como aliás se vê no filme em questão. Passando as contextualizações à frente, voltemos à citação.

Salvaguardando as diferenças evidentes entre ser herói e ser santo, também o Evangelho nos oferece propostas semelhantes. Alguns exemplos são: o de Abraão, que tinha já setenta e cinco anos no momento em que, ouvindo a voz do Senhor, se decidiu a largar tudo e ir por onde Ele o indicasse (Gn 12, 1-8); o de Samuel, consagrado desde jovem, que se dispôs de imediato a servir o seu Deus desde que chamou pelo seu nome (1 Sm 3, 1-10); o de Isaías, que prontamente se oferece como mensageiro do Senhor (Is 6, 1-13); o de Jeremias, que confiou apesar do medo de ser ainda jovem (Jr 1, 4-10). Enfim, podíamos continuar pelos profetas, mas saltemos para o Novo Testamento e vejamos o exemplo: de Maria e o seu sim tão pleno, como já conhecemos (Lc 6, 26-38); de Zaqueu, que acolheu o Senhor ao som da Sua voz (Lc 19, 5-6); do Bom Ladrão, que só precisou de contemplar o rosto do Senhor para se decidir a amá-l’O (Lc 23, 40-43).

Para cada um destes homens e mulheres, foi um só momento que determinou tudo. É claro que as decisões que aí vemos, na sua maioria, não são fruto de um  impulso aleatório, mas não é isso que está em questão. É evidente que não encontraremos na Sagrada Escritura um apelo à irresponsabilidade; encontraremos, isso sim, uma apologia da radicalidade. Não se trata de ser inconsequente, mas de ter bem diante dos olhos as consequências de seguir o Senhor.

De todos estes exemplos, aproveita aquele com que mais te sintonizes. Ou encontra outro, quiçá da tua própria vida, e não da Escritura. Aproveita, encontra e… saboreia – afinal, é tempo de férias, e para Deus não precisamos de estar carrancudos! Estes homens e mulheres – é certo que de outro tempo e lugar, mas isso não nos desculpa – não puseram o chamamento do Senhor em fila-de-espera.

 

UM EXEMPLO CONCRETO…
Sigamos, de perto, o exemplo de S. Mateus (Mt 9, 9):

«Partindo dali, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: “Segue-Me!” E ele levantou-se e seguiu-O».

 

1. Partindo dali, Jesus viu um homem chamado Mateus…

A bola não começou do lado de Mateus. Não foi ele, com a sua bravura, com a sua abnegação, com o seu altruísmo, que se dispôs a seguir o Senhor. Não, nada disso. Foi o Senhor Deus do Universo que passou por ali e o viu. É legítimo termos medo de seguir o Senhor por nos julgarmos inúteis, indignos, incapazes. Mas não assistimos, neste texto – e em nenhum outro –, a um discurso sobre a utilidade, dignidade ou capacidade do chamado. Aqui, pelo contrário, vemos quase a casualidade do que aconteceu: Jesus passou por ali e viu um homem chamado Mateus. Ser chamado pelo Senhor, que não tem nada de iniciativa nossa, também não tem nada de que nos possamos gloriar. O Senhor, ao que parece, não chamou Mateus por ser melhor que ninguém, mas simplesmente porque estava ali, no local certo à hora certa.

2. …sentado no posto de cobrança…

Se foram o onde e o quando os determinantes na vocação de Mateus, também aqui parece não haver muito a fazer: Mateus estava no seu posto de trabalho, no seu dia-a-dia, sem tirar nem pôr. Foi aí que o Senhor Se cruzou com ele. E, note-se, não era um quotidiano muito “limpo” – bem sabemos a estima que o povo Judeu tinha pelos cobradores de impostos. Mas não há barreiras para o Senhor Deus dos Exércitos: nem no tempo de Mateus, nem agora. Também não há necessidade de procurarmos Jesus feitos baratas-tontas: Ele vem ter connosco aqui mesmo, onde estamos.

O%20chamamento%20de%20Mateus%2C%20Caravaggio.%20Igreja%20de%20S%C3%A3o%20Lu%C3%ADs%20dos%20Franceses%2C%20Roma
O chamamento de Mateus, Caravaggio. Igreja de São Luís dos Franceses, Roma

3. …e disse-lhe: “Segue-Me!”…

Ele virá: escondido numa Cruz ou rugindo como Leão de Judá, mas virá. E aí mesmo, onde estivermos, não poderemos não ouvir a Sua voz. Não haverá mais distância, «nem luto, nem pranto, nem dor» (Ap 21, 4). Estaremos, enfim, diante desse Senhor tão bom… ou melhor, Ele estará diante de nós. Ouviremos a Sua voz. Será clara, distinta: «Segue-Me»! Não teremos como a confundir, como a ignorar.

4. E ele levantou-se e seguiu-O.

Agora sim, a bola está do lado de Mateus – está do nosso lado. Podemos fugir, podemos negar, podemos… Mas não poderemos ignorar, fingir que não ouvimos, pôr a cabeça dentro da areia. A voz do Senhor ressoou pelo universo, como no dia da Criação. É a nossa vez… o que queremos dizer? O que podemos dizer? Mateus não disse nada – levantou-se e seguiu-O.

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Ser santo é muito diferente de ser herói… aqui não pode haver vidas duplas, não há disfarces, não há méritos nem reconhecimentos. Mas haverá para nós herói maior do que S. Francisco de Assis, S. Inácio de Loiola, S. Mateus…? Parece que todos os santos são heróis; e, embora nem todos os heróis sejam santos, a matemática funciona da mesma forma: aqui está um momento; são quatro ou cinco… e um de cada vez! O primeiro passo, parece, é estar atento. Um dia o Senhor passará no meu posto de cobrança… talvez nesse dia tenha especial lucro e não queira ir com Ele; ou talvez seja esse o dia em que tinha planeado algo diferente. Enfim, quiçá nesse dia esteja de férias – que nada me sirva de desculpa. O Senhor passou e chamou. Nós não somos nada de especial, mas estamos à beira do Seu caminho e Ele viu na nossa pequenez uma oportunidade. Oportunidade de quê? Não sabemos ainda… mas Ele passa, e chama, e só saberemos se formos com Ele.

Quatro ou cinco momentos, e este é um deles.

 

Consulte as propostas anteriores da rubrica Férias com Deus:

Proposta 3 – Pode a oração ser uma luta?

Proposta 2 – Dilatar o coração

Proposta 1 – Só avança quem descansa

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.