Procura-se: amigos e lavadores de pés

A Brotéria sugere o livro mais recente de Sean O'Malley. Uma obra que é e não é um livro de espiritualidade. Partindo de textos de um retiro dados aos bispos portugueses, O'Malley mostra o seu entendimento sobre o lugar da Igreja no mundo.

A Brotéria sugere o livro mais recente de Sean O'Malley. Uma obra que é e não é um livro de espiritualidade. Partindo de textos de um retiro dados aos bispos portugueses, O'Malley mostra o seu entendimento sobre o lugar da Igreja no mundo.

Este é e simultaneamente não é um livro de espiritualidade. Como se poderia esperar de alguém como o Cardeal O’Malley, a intenção do que é dito vai muito para além daquilo que aparece escrito no texto. Por essa razão, é preciso ler este livro com atenção a todos os detalhes não só de modo a deixar-se tocar pelo que O’Malley diz sobre a fé, mas também de modo a deixar-se provocar pelo que O’Malley revela sobre a cultura, a política e o mundo. A subtileza é uma arma só ao alcance dos grandes – e se há coisa que define estes textos, é precisamente a sua abordagem subtil.

Começando então pela primeira parte: este é um livro de espiritualidade. O’Malley orientou o retiro dos bispos portugueses em março de 2019 e a maioria dos textos contidos neste volume nasce desse contexto. A linguagem usada é uma linguagem de fé, de exortação, de redescoberta da importância da oração na vida dos bispos. Fala-se da importância de ter uma regra de vida pessoal que mantenha tempo para o exame de consciência e para a leitura; fala-se da centralidade da misericórdia para que a vida de um bispo seja coerente com o múnus que desempenha; e fala-se de como a vida dos bispos não pode ser feita de constante correria, de incessante actividade, mas de como precisa de tempo para o silêncio, para a conversa, para o encontro com outros padres que ajudem a ressituar a ligação pessoal de cada um ao Evangelho. O que há que assinalar acima de tudo é o facto de todas estas notas sobre a fé e sobre a vida espiritual serem muito facilmente adaptáveis para a vida de todos os fiéis cristãos que não sejam bispos. A linguagem e os temas que O’Malley trata são facilmente universalizáveis, o que faz com que a leitura seja fácil e pessoalmente interpelante. Este é um importante livro de espiritualidade.

Não há campo e não há tema que a Igreja não seja chamada a viver publicamente.

Ao mesmo tempo, este não é um livro de espiritualidade. Além de um homem do espírito, O’Malley é também um homem do mundo no melhor sentido do termo. O seu conhecimento da realidade da Igreja e do lugar da Igreja no mundo aparecem perfeitamente espelhados ao longo do livro – de tal maneira que este é um livro fundamental para qualquer pessoa, crente ou não, que queira perceber como pensa hoje em dia a Igreja sobre assuntos de moral, de política, ou de justiça. Talvez a questão principal ao longo de todos os textos seja o ênfase que O’Malley vai pondo na importância de a Igreja não viver fechada em si mesma. “A Boa Nova tem que ser proclamada com um sentido de urgência irresistível” (49), diz. Este é um ponto repetido de muitas formas e com muitas variações. Como também escreve, “Cristo chamou-nos a ser pescadores de homens, e nós frequentemente somos é cuidadores do aquário” (62). A relação próxima, íntima, que a Igreja tem que ter com o mundo e com as suas grandes preocupações – entre as quais estão as que se relacionam com o incontornável escândalo dos abusos sexuais no seio da Igreja – nasce deste chamamento a sair de portas e a proclamar aquilo que se recebeu. E neste sentido, vendo as coisas desta maneira, não há campo e não há tema que a Igreja não seja chamada a viver publicamente. Deste ponto de vista, este não é um livro de espiritualidade: é um manifesto, que expõe as motivações da Igreja e que exprime o desejo de assumir as consequências que decorrem dessas motivações.

“Procura-se: amigos e lavadores de pés”. Poucos livros têm dito tanto de forma tão subtil.

Procura-se Amigos e Lavadores de Pés
Paulinas Editora, 216 páginas
Preço: 14,50€ – Comprar aqui

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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