Porque cresce a extrema direita?

Será razoável esperar que traços profundos de uma matriz civilizacional de séculos possam ser tão profundamente alterados, no período de meras duas ou três décadas? Não terão as sociedades um ritmo de mudança que precisa de ser respeitado?

Será razoável esperar que traços profundos de uma matriz civilizacional de séculos possam ser tão profundamente alterados, no período de meras duas ou três décadas? Não terão as sociedades um ritmo de mudança que precisa de ser respeitado?

Este artigo foi inicialmente publicado na edição do semanário Expresso do dia 16 de julho de 2024, a propósito das eleições europeias. Republicamo-lo agora, a propósito das eleições americanas

Depois destas últimas eleições europeias, de vários quadrantes se sentiu a preocupação pelo crescimento de forças políticas apelidadas de extrema direita (ou da direita radical e populista).

Tal preocupação será certamente compreensível: afinal, não faz ainda um século, forças de extrema direita conduziam a Europa a uma guerra mundial, da qual veio a resultar um indescritível número de horrores e sofrimentos, com mortes e devastação a uma escala sem precedentes.

Porém, se o crescimento da extrema direita nos preocupa, talvez faça também sentido nos tentarmos questionar sobre possíveis razões de tal crescimento: porque será que tem crescido tanto? E porquê agora?

Como em tudo, as razões serão provavelmente várias. Para além de razões de ordem económica, talvez não seja irrelevante recordar que este crescimento venha a ter lugar na sequência de uma série de mudanças profundas que têm vindo a ser gradualmente operadas nas nossas sociedades ocidentais.

Podem apontar-se, por exemplo, a redefinição de conceitos basilares e estruturais, como o conceito de família e de casamento, ou até de homem ou mulher; ou o modo como novos seres humanos podem hoje ser gerados (e a quem é confiada a sua custódia); ou a doutrina moral oficial a partir da qual as nossas crianças devem hoje ser formadas.

Aquilo que não há muito tempo era entendido como crime, é hoje proposto que seja não apenas legal, mas proclamado como direito universal, e inscrito como tal em constituições (como a possibilidade de pôr intencionalmente fim a uma vida humana, caso a sua existência seja considerada suficientemente curta, ou suficientemente longa).

Já no referente à identidade ou história nacional, aspetos que anteriormente poderiam ser (exclusivamente) apresentados como motivo de orgulho, podem passar hoje a ser (exclusivamente) apontados como motivo de vergonha e de culpa.

Certamente que qualquer sociedade terá sempre muito para progredir – inclusivamente nos temas acima referidos. A mudança faz parte da vida, sempre em direção a uma vida mais saudável e mais plena. E há certamente muito que precisa de ser transformado nas nossas sociedades.

Mas o que pode ser questionado é se será razoável esperar (ou até querer forçar) que traços profundos de uma matriz civilizacional de séculos possam ser tão profundamente alterados, no período de umas meras duas ou três décadas. Não terão as sociedades também um seu próprio ritmo natural de mudança que precisará, também ele, de ser respeitado? (e que poderá não coincidir com o eventual sentido de urgência experimentado por aqueles que, no poder político ou no poder mediático, se sentem chamados a guiá-las ou a iluminá-las).

Poderemos nos perguntar também se as linhas mestras da vida em sociedade poderão ser estabelecidas de um outro modo que não através de processos de diálogo serenos e pacientes, que procurem dar voz e respeitar ritmos e sensibilidades das várias formas de ver? Aliás, poderão alterações a este nível perdurar pacificamente no tempo, se forem levadas a cabo de modo fraturante, por maiorias escassas e conjunturais, e não com base em entendimentos mais amplos e consensuais?

E a quem eventualmente possa pensar de forma diferente: poderá também haver espaço na sociedade para essas pessoas, para a sua opinião (se é em democracia que queremos avançar)? Na verdade, muitos dos que não tenham acompanhado a rápida deslocação do que, supostamente, deverá hoje ser considerado o ‘centro’ têm sido facilmente rotulados de ultra-conservadores (o qualificativo ‘conservador’ dificilmente aparece hoje sem esse seu prefixo); quem tenha a coragem de exprimir publicamente alguma hesitação ou perplexidade diante das profundas transformações operadas pode ser prontamente posto de parte, desligado do espaço mediático.

Muitos dos que não tenham acompanhado a rápida deslocação do que, supostamente, deverá hoje ser considerado o ‘centro’ têm sido facilmente rotulados de ultra-conservadores (o qualificativo ‘conservador’ dificilmente aparece hoje sem esse seu prefixo); quem tenha a coragem de exprimir publicamente alguma hesitação ou perplexidade diante das profundas transformações operadas pode ser prontamente posto de parte, desligado do espaço mediático.

Na Alemanha da década de 1930, o crescimento de popularidade da extrema direita pode, em certa medida, ser entendido como reação: reação a forças igualmente extremas, mas de sinal oposto, que tentavam também impor a sua agenda na sociedade. A subida do número de votos no partido nacional socialista de então parece ter sido tragicamente reveladora da polarização crescente, e do ressentimento que parte significativa da população alimentava então para com o projeto de ‘criação do homem novo’, que sentia poder ser-lhe então imposto, à sua revelia.

De modo semelhante, talvez não seja surpreendente que um dos modos de continuar a alimentar a extrema direita hoje possa ser, precisamente, continuar a tentar puxar com força a corda na direção de um progressismo mais radical. Se assim acontecer, talvez não seja de admirar que significativa reação de sinal contrário continue então a fazer-se sentir, com igual ou maior força ainda.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.