Por uma educação para a cidadania democrática

Se é difícil encontrar generalizados entendimentos em relação ao que é adequado ensinar e aprender, é impossível ter em boa conta todas as recomendações sobre as áreas em que a escola deveria suprir as lacunas da educação familiar.

Se é difícil encontrar generalizados entendimentos em relação ao que é adequado ensinar e aprender, é impossível ter em boa conta todas as recomendações sobre as áreas em que a escola deveria suprir as lacunas da educação familiar.

O Ponto SJ lançou o debate sobre o tema da Educação para a Cidadania. Este é um dos artigos que se insere nesta reflexão alargada. Para aceder a este dossier, clique em Ed. Cidadania.

 

Cada nova controvérsia consolida o esquecimento da anterior, mas as polémicas são frequentes quando o tema é o ensino e a educação. São habituais e consequência normal de nunca ter havido, como, com certeza, jamais haverá, um vasto acordo sobre o que deve ser a missão da escola, do que lá se deve ensinar e aprender. Uns gostariam que a escola se concentrasse em cumprir apenas, devidamente, a tarefa de formar alunos que soubessem ler, escrever e contar. Outros julgam que a escola não se deve furtar a educar as crianças e os jovens de um modo mais vasto, o que incluiria fornecer-lhes os instrumentos para serem cidadãos do presente – “Os jovens não são o futuro, mas o presente”, tem dito o Papa Francisco –, cuidando, portanto, de os incentivar a participarem na vida da escola e da comunidade.

Mesmo que se desse o caso de haver um amplo consenso em torno de uma missão minimalista, as polémicas não desapareceriam. Basta reparar no alvoroço que suscitam, tantas vezes, certas mudanças ou pretensões de mudanças nos programas disciplinares. A possibilidade de Os Maias, de Eça de Queirós, não serem obrigatoriamente estudados no ensino secundário mobilizou, por exemplo, há não muito tempo, a veemência de muitos colunistas.

No número 457 da revista Esprit sobre “o sentido da escola”, que assinalava, há um ano, o regresso às aulas, vários autores apresentavam distintas propostas de novas matérias que deveriam tornar-se objeto de estudo: a mutação digital (implicando “a definição de um horizonte ético do digital no seio da escola”); as imagens (“a aprendizagem do olhar); ou os genocídios e os crimes de massa (“a aprendizagem das inumanidades”), por exemplo.

Uns gostariam que a escola se concentrasse em cumprir apenas, devidamente, a tarefa de formar alunos que soubessem ler, escrever e contar. Outros julgam que a escola não se deve furtar a educar as crianças e os jovens de um modo mais vasto, o que incluiria fornecer-lhes os instrumentos para serem cidadãos do presente.

Se é difícil encontrar generalizados entendimentos em relação ao que é adequado ensinar e aprender, é impossível ter em boa conta todas as recomendações sobre as áreas em que a escola deveria suprir as lacunas da educação familiar, uma vez que, mais ou menos espaçadamente, as sugestões se vão multiplicando. Quando a escola promove, por exemplo, a educação para a prevenção dos fogos florestais ou para a prevenção da sinistralidade rodoviária, vêm uns e reclamam que a escola eduque para o otimismo, chegam outros e reivindicam que prepare para a aceitação do sofrimento… Perante tantas solicitações, há quem queira que a escola seja uma espécie de santuário que se ofereça como abrigo para os mais novos escaparem às disputas e aos problemas do presente, ao que se tem contraposto que talvez o melhor modo de os proteger seja fornecer-lhes e ensiná-los a usar as ferramentas que os subtraiam ao cinismo e à mentira e que os estimulem a desejar e a participar na edificação de um mundo melhor.

Este propósito dita que se apurem quais as ferramentas necessárias, como e quando se deve ensinar a usá-las e que nome se deve dar ao conjunto de ferramentas a disponibilizar: “Formação Cívica”? “Educação para a Cidadania”? “Cidadania e Desenvolvimento”? “Introdução à Política”?

“Formação Cívica” – para recuarmos apenas cerca de uma década e para não falarmos do papel relevante que nela desempenham os clubes ou os jornais escolares – era a designação de uma disciplina obrigatória nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico, que os diretores de turma se encarregavam de ministrar. A Formação Cívica acabou com chegada de Nuno Crato ao Ministério da Educação, tendo a decisão sido contestada pela oposição de esquerda e também, o que é significativo, pelo organismo da juventude do principal partido do governo, a JSD.

O Ministério da Educação propôs, em alternativa, uma “Educação para a Cidadania” que fosse um encargo transversal de todas as disciplinas e que justificasse ainda atividades e projetos. No documento com as Linhas Orientadoras do que isso deveria ser, a Direção-Geral da Educação afirmou em dezembro de 2012 que a escola oferece “o contexto para a aprendizagem e o exercício da cidadania e nela se refletem preocupações transversais à sociedade, que envolvem diferentes dimensões da educação para a cidadania, tais como a Dimensão Europeia da Educação, a Educação Ambiental/Desenvolvimento Sustentável, a Educação do Consumidor, a Educação Financeira, a Educação Intercultural, a Educação para a Igualdade de Género, a Educação para a Saúde e a Sexualidade, a Educação para a Segurança e Defesa Nacional, a Educação para o Desenvolvimento, a Educação para o Empreendedorismo, a Educação para os Direitos Humanos, a Educação para os Media, a Educação Rodoviária e a promoção do Voluntariado”.

Perante tantas solicitações, há quem queira que a escola seja uma espécie de santuário que se ofereça como abrigo para os mais novos escaparem às disputas e aos problemas do presente, ao que se tem contraposto que talvez o melhor modo de os proteger seja fornecer-lhes e ensiná-los a usar as ferramentas que os subtraiam ao cinismo e à mentira e que os estimulem a desejar e a participar na edificação de um mundo melhor.

Com um novo titular, Tiago Brandão Rodrigues, o Ministério da Educação criou a disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento”, obrigatória no ensino básico e estruturada no ensino secundário do modo julgado mais adequado, por exemplo, através da valorização de áreas específicas, abordadas no contexto curricular de determinadas disciplinas ou em articulação com projetos. Encontra-se organizada em “três grupos com implicações diferenciadas”. No primeiro grupo – “obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade (porque se trata de áreas transversais e longitudinais)” – tem de se abordar “Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade, Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental, Saúde”. No segundo grupo – “trabalhado, pelo menos, em dois ciclos do ensino básico” – estuda-se “Sexualidade, Media, Instituições e participação democrática, Literacia financeira e educação para o consumo, Segurança rodoviária, Risco”. O terceiro grupo – “com aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade” – trata de “Empreendedorismo; Mundo do Trabalho; Segurança, Defesa e Paz; Bem-estar animal; Voluntariado; Outras, de acordo com as necessidades de educação para a cidadania diagnosticadas pela escola”.

Haverá, com certeza, umas quantas ferramentas dispensáveis e outras que se revelarão em falta, mas é pouco prudente declarar a prescindibilidade de uma educação cívica. O fundador do Centre de Liaison de l’Enseignement et des Moyens de l’Information (CLEMI), Jacques Gonnet, sustenta, em Educação para os media. As controvérsias fecundas [1], que o que, de facto, falta é uma educação política – que é o que também é a educação para os media, considera ele – e lamenta que, “‘para não magoar ninguém’, esta ‘educação política’ se pratique em segredo, sob o disfarce de ‘educação cívica’”. Para o académico francês, é “uma irresponsabilidade não dar aos jovens o gosto da política, não lhes fazer sentir que a democracia é um bem inestimável, invejado por aqueles que dele estão privados e que se batem por que se possa afirmar uma certa ideia do homem, do respeito pelo outro”.

Essa finalidade tem feito, simultaneamente, com que o conteúdo escolar se afaste do estímulo da imaginação e do treino das faculdades críticas para se concentrar no que é diretamente relacionado com a preparação para exames e com que, pedagogicamente, se substitua um “ensino que procura promover o questionamento e a responsabilidade individual” por um “ensino de assimilação forçada orientado para a obtenção de bons resultados nos exames”.

Se, aliás, alguma deriva escolar tem sido particularmente nefasta, ela decorre da pressão de “ensinar para o exame”, que a filósofa Martha C. Nussbaum eloquentemente denuncia em Sem fins lucrativos. Porque precisa a democracia das humanidades [2]. Essa finalidade tem feito, simultaneamente, com que o conteúdo escolar se afaste do estímulo da imaginação e do treino das faculdades críticas para se concentrar no que é diretamente relacionado com a preparação para exames e com que, pedagogicamente, se substitua um “ensino que procura promover o questionamento e a responsabilidade individual” por um “ensino de assimilação forçada orientado para a obtenção de bons resultados nos exames”.

Considerando “muito frágil” o estado mundial da educação para a cidadania democrática, Martha C. Nussbaum crê que importa “reforçar o nosso compromisso com as partes da educação que mantêm viva a nossa democracia”.

Fernando Savater, outro filósofo, tem idêntico ponto de vista. A “educação é transmissão do que consideramos essencial de nossa cultura, de nossa vida, às outras gerações”, defendeu ele numa entrevista concedida ao diário brasileiro O Estado de S. Paulo [3]. “Há essa faceta, de ensinar destrezas que sirvam para o trabalho, mas também há a formação cívica e ética. Comparo a educação com uma pessoa em sua casa, onde estão todos os seus bens preciosos, quadros, livros, discos. De repente, há um incêndio, e é preciso salvar aquilo de que gostamos. É isso, o que há de valioso, o que queremos passar adiante, a razão de ser da educação”. O filósofo constata que “o que acontece é que hoje a educação se considera simplesmente laboral. Queremos formar empregados, pessoas rentáveis, que ganhem e façam ganhar dinheiro, rapidamente. Essa pode ser uma opção, mas não é a base da educação”. O fundamental no ensino, acrescenta Fernando Savater, “é formar cidadãos, pois na democracia somos todos governantes. E, como somos governantes, é preciso educar para não sermos mal governados. Se caímos nas mãos de ignorantes, fanáticos, cínicos, a democracia será prejudicada, ou impossibilitada, como aconteceu em alguns lugares”. Melhor dizendo: como está a acontecer em demasiados lugares.

 

[1] Porto: Porto Editora, 2007
[2] Lisboa: Edições 70, 2019
[3] “Mente aberta”. 31 de Outubro de 2015

 

Fotografia de: Taylor Wilcox – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.