As palavras são importantes. Realidades simples, enquanto estruturas de jeitos sonoros e desenhados para servir como símbolo de um real, material e transcendente, espacial e temporal, mas com capacidade de albergar em si este mundo e o outro. Conseguem representar o menor, o maior, um extremo e o seu oposto. Há palavras que são monumentos, outras que são sentimentos, outras ainda que são um horror, e outras que são um autêntico mistério. As palavras, mais que tudo, são um milagre, talvez o maior da nossa existência humana, pela sua potência incomparável.
Este não é um texto sobre etimologias, hermenêuticas, nem sequer semióticas. Mas se há um “mito” que merece a pena ser falado no dia de hoje é a palavra política. Mito, no sentido pessoano do “nada que é tudo (…) o corpo morto de Deus / vivo e desnudo”. A política, essa palavra (essa realidade) que é metáfora, que é processo, que é ideia, que é prática, que é ambição. De quê? De uma obra, mais concretamente “da” obra que mais interessa: a da vida comum e permanente de um grupo de pessoas, diversas porque únicas, na sua natureza, e que procuram (que precisam) do outro que é diferente, mas, ao mesmo tempo, seu semelhante, não só para sobreviver mas sobretudo para se realizar, no grande palco em que conjuntamente existimos, e a que demos o bonito nome de “vida”.
A política é essa massa que nos junta e agrega, dentro das nossas diferenças, que nos permite desenvolver e pela qual nos coordenamos e conduzimos as nossas discórdias e lutas, os nossos medos e suspeitas, o cartaz em que partilhamos os nossos sonhos e em que assentamos os nossos compromissos, as nossas vontades e as nossas ambições, em que descobrimos os outros e com isso nos descobrimos melhor a nós, com os outros. A política é a arte do possível e terreno, e do impossível e esperançoso, e, portanto, uma coisa nobre, séria, difícil, complexa, dura, maravilhosa e já agora: absolutamente necessária.
O estado da política em Portugal não é o melhor. A política fechou-se na sua dimensão mais tática e procedimental. Em vez de uma luta pelo melhor, vive-se uma luta pelo possível; e, dentro deste, pelo mínimo dos mínimos possíveis.
O estado da política em Portugal não é o melhor. A política fechou-se na sua dimensão mais tática e procedimental. Em vez de uma luta pelo melhor, vive-se uma luta pelo possível; e, dentro deste, pelo mínimo dos mínimos possíveis. Podíamos, talvez, entender isto se o país estivesse num estado social e económico animado. Mas o cenário é o oposto. Temos salários baixos que tornam difícil suportar um crescente custo de vida, existindo um número enorme de pessoas em risco de pobreza e um nível perigoso de desigualdade social com base em critérios económicos. Existem problemas nos sistemas de saúde e de justiça, e a cultura é um apetrecho giro de ter, como uma medalha “cool” na lapela, mas não de cuidar e potenciar. Olhamos para o maior projeto de unificação política europeia como uma torneira que vai dando uns trocos, e cá estamos, como se movidos por aquele verso de “cá se vai andando / com a cabeça entre as orelhas”, criticando tudo o que se passa em redor mas sem ver, no horizonte, nada que venha realmente alterar a situação.
Este status quo roça o insuportável e deve-se sobretudo aos partidos que fizeram parte do “estado das coisas” dos últimos vinte anos. Falo dos partidos que governaram em sentido lato, formando Governo e aprovando leis na Assembleia da República, por si só e através de coligações, acordos, parcerias. Aos partidos que, vinte anos depois do início do século, definiram o sentido das orientações políticas nacionais, dos grandes debates, das grandes questões, das grandes propostas. E que, através das suas ações e dinâmicas, nos fizeram chegar aqui.
O debate partidário atual não passa de um rame-rame demasiado estratégico e de vistas curtas, onde interessa mais o “posicionamento” particular de um partido (ou de uma fação interna do mesmo) do que a construção de um caminho comum transformador que vise mudar o paradigma do país, mexendo-o com vista a um modelo de sociedade diferente e diferenciador. Os acordos entre partidos, mais do que representarem uma estratégia conjunta, são apenas manobras para tentar manter ou garantir uma vantagem de poder no curto e médio prazo, e pouco mais. Não há um caminho, nem há uma visão: o alcance é curto, de navegação à vista, como se estivéssemos à espera de um catalisador qualquer que nos acorde e indique o caminho. A corda rompeu com este orçamento, porque tanta tática sem rasgo só dá até um certo ponto. Agora vamos ter eleições, no final do primeiro mês do próximo ano.
O debate partidário atual não passa de um rame-rame demasiado estratégico e de vistas curtas, onde interessa mais o “posicionamento” particular de um partido (ou de uma fação interna do mesmo) do que a construção de um caminho comum.
Há quem tenha medo de eleições, considerando-as como um perigo e um fator de instabilidade. Mas as eleições são a melhor coisa que podemos ter, pois levam à obrigação dos partidos se apresentarem aos eleitores para procurarem legitimação para o exercício de poder. E cabe aos eleitores decidir que projetos políticos querem legitimar, a partir das várias propostas apresentadas. A democracia vive, e com ela, a política respira, numa nova oportunidade de ganhar ar e de evoluir, levando-nos com ela.
Cabe aos partidos uma palavra central e definidora neste momento, ao propor caminhos e estratégias ambiciosos e realmente transformadores, que procurem mudar o estado das coisas para que tanto contribuíram, fazendo com que o país se torne melhor, ou seja: mais justo, mais livre e mais igual. E para isso, os partidos (todos os partidos) têm de saber fazer autocrítica e saber quando é o tempo de mudar a mensagem, e com isso os protagonistas cuja palavra já se esgotou. A necessidade de alteração de liderança é clara, quer à direita, quer à esquerda, quer ao centro. Uma mudança que leve a novos líderes que, mais do que soluções, apresentem planos modernos e modernizadores, sem cair em extremismos populistas que visam mais desagregação do que união.
Precisamos de alternativas democráticas e cientes do que querem, mas abertas ao diálogo e à construção, dentro das suas áreas ideológicas, de um caminho comum. Livres de trincheiras, mas prontos para a luta que interessa, que é a mais exigente e bonita: a da política como projeto comum, de ação de uma comunidade para si mesma e para o mundo. Precisamos de edificar, sobre “o mesmo sol que abre os céus”, algo estrutural e nosso. Que sejam capazes dessa exigência, de fazer jus à palavra e ao seu sentido, ao seu dever, e à sua promessa, do bem de todos, por todos.
Fotografia de Singa Hitam – Wikicommons
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.