Confesso que nunca liguei muito à passagem de ano. Ainda assim, apercebo-me que, muitas vezes, a expectativa de “novidade” traz (ou pode trazer) um sentimento provisório de leveza, de mudança, de melhoria. Talvez nos faça bem, de facto, criar estes ciclos de abertura e de fecho, seja para selar lutos, seja para sonhar futuros. Possivelmente, esta experiência coletiva de “recomeço” rejuvenesce-nos com a esperança de novas possibilidades, ao mesmo tempo que pomos os nossos “contadores” a zero. Para trás ficam as dores; à frente estão as metas.
Por outro lado, pressinto que estas festas de calendário, apesar das suas razões e usos ambíguos, têm o condão de nos “obrigar a dançar”, como para nos dizer que festejar faz bem. Precisamos disso para viver, sobretudo quando estamos frágeis e vulneráveis. Por isso, a rotina anual da festa tem um alcance pedagógico de nos ensinar a saborear e a celebrar a vida sem esperar pelas condições perfeitas. Digo isto com a profundidade possível a quem está a escrever um artigo num banco de autocarro… (Certamente, alguém já terá estudado estes mecanismos psicológicos e sociais com muito mais interesse.)
Quando imaginei esta playlist de ano novo, lembrei-me imediatamente da quantidade de listas do estilo “feel good” ou “good vibes”, disponíveis nas plataformas de música online e pensei: «já há tanta coisa bem feita desse género, não vale a pena fazer mais do mesmo». Por isso, optei por partir de outra questão: como seria uma playlist para um ano inteiro? Como fazer um retrato musical de um ano que ainda não conhecemos?
Eis as “regras” que me impus para fazer este exercício:
(a) iria escolher 12 músicas, uma por mês;
(b) iria tentar captar as diferentes estações do ano, com os seus ambientes próprios, a fim de se dar pela “passagem do tempo”;
(c) iria também incluir diferentes geografias (afinal, um ano leva-nos para muitos sítios);
(d) queria também retratar alguns dos estados de espírito que nos vão visitando, durante o ano (os diferentes lugares existenciais que frequentamos);
(e) por último, gostava que estas músicas tivessem alguma novidade a quem as ouve (dando a conhecer artistas variados e obras recentes).
Afinal, ano novo, música nova.
Às vezes, as músicas são luminosas e sorridentes (como no caso das faixas «Light», dos Parcels, e «Desert Song», dos Säge). Outras vezes são fortemente urbanas, como em «Parking Lot», dos Weather Station, ou então claramente bucólicas, como é o caso de «Big Country», de Émile Mosseri. Há músicas profundamente frias e de inverno («Meditation in an Emergency», de Susanne Sundfør), e outras cheias de calor e de verão («Mam Yinne Wa», dos Alogte Oho). Umas vezes sente-se o conforto da amizade («Best Friends», The Staves), outras somos atropelados pelo choro da perda («Dido’s Lament», de Henry Purcell, cantado de forma comovente e humana por Simone Dinnerstein). O riso (crítico) dos The Divine Comedy leva-nos a entrar de outro modo nas festas de Natal («Home for the Holidays»), ao passo que a voz grave de Leonard Cohen nos conduz através do silêncio de Deus («Listen to the Hummingbird»). Já a música outonal para piano de Meredith Monk («Ellis Island») tem uma nostalgia luminosa, enquanto o western indie de Rapaz Ego nos faz mergulhar num filme surrealista («Grão Mestre») cheio de contrastes (quente nos sons, frio na ameaça da letra).
Mais do que uma coleção de novas músicas, esta playlist é o espelho de uma reflexão acerca do modo como a música (também) nos pode ajudar a ler a vida e, se possível, a celebrá-la nas suas diferentes estações. Talvez não dê para usar num jantar de amigos (!), mas espero que ajude a ler os meses do ano que virá.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.