Hesitei antes de escrever estas palavras. Há muito pó no ar, o essencial está dito e escrito, existe perigo de redundância.
Para que não restem dúvidas, coloco-me no lado dos que choram esta dor profunda. Que lamentam adicionalmente – não bastasse a primazia da indizível e imensa fratura das vítimas – o encobrimento, a falta de coragem, a lentidão, a desgraça comunicativa e o desacerto.
Entendo, além do mais, que não chegou a hora de falar para fora da Igreja, sobre a grande e profunda base deste iceberg. A quem me observa como católico romano, neste lugar em que estamos, só quero abrir o peito, assumir, pedir perdão, lamentar profundamente o sucedido, reconhecer que não estamos a dar a resposta assertiva que a realidade pede e propor-me contribuir para ações reparadoras centradas nas vítimas. Desejo fazê-lo na primeira pessoa do plural, porém, por mandato não clerical. Este não é um problema apenas dos Bispos. No mínimo, posso autocriticar-me por não ter participado o suficiente e assim ter permitido chegarmos aqui. A sinodalidade, verdadeiro programa ontológico da Igreja, é para ser vivida em todos os momentos da caminhada e, mesmo que não dentro dos muros religiosos, os leigos católicos estarão a ser escutados.
Mas como este apodrecimento é, na sua génese, estrutural e longínquo, permito-me, ad intra, num espaço como o Ponto SJ, tão católico como aberto, ir desbravando alguns caminhos e, de alguma forma, ir fazendo por ver mais fundo as infeções por onde estamos a sangrar, para que alguma purga seja possível.
Desejo fazê-lo na primeira pessoa do plural, porém, por mandato não clerical. Este não é um problema apenas dos Bispos. No mínimo, posso autocriticar-me por não ter participado o suficiente e assim ter permitido chegarmos aqui.
Vou concentrar-me, sem desvalorizar argumentos que estão muito em jogo, como o clericalismo, a miopia no que concerne à sexualidade ou a cultura de poder defensivo, no elemento autocrítico que mais me tem vindo a espantar neste dossier: é o facto de grande parte da luz que está a vir para cima da mesa ter sido desencadeada por elementos exteriores à Igreja Católica Romana. Falo de jornalistas, de intervenções nas redes sociais, Ministério Público, sociedade civil. É impressionante que não tenham sido o amor à justiça e à verdade, bem como o privilégio pelos menores, tão escarrapachados no Evangelho, a alavancar a emergência da realidade, como ela é. E gostava de pegar neste facto, por um lado tão dramático, para tecer um rasgo de esperança. Vou tentar explicar-me:
1 – Uma das neblinas comprometedoras da Igreja que somos reside numa visão dicotómica entre as coisas de Deus e as coisas do mundo. Com inspiração agostiniana e não só, há muito deste diapasão nas expressões religiosas que praticamos e nos olhares sobre nós mesmos… e sobre ‘o mundo’.
2- É verdade que a teologia, a cristologia e a eclesiologia mais fecundas já andam há muito tempo noutros terrenos: a mensagem cristã faz precisamente a ponte entre a humanidade e a transcendência e nem seria exagerado escrever que Jesus de Nazaré é em si mesmo este programa libertador de síntese amorosa e integrada entre o céu e a terra, entre a humanidade e a divindade, entre eles e nós. Jesus era alguém misturado nas gentes, mesmo que socialmente não recomendáveis, e não um religioso identitário, rigidamente praticante, doutrinal e defensivo.
3- A visão de uma Igreja “sabichona”, que parte com a sua verdade para converter o mundo, foi enterrada (pelo menos nas palavras) com o Concílio Vaticano II. O seu mandato, precisamente recristificado, é agora aberto e poroso, de fora para dentro e de dentro para fora.
4- Não há portanto – porventura nunca houve – cristianismo sem enculturação. É na cultura como ela é, sem dentro e fora da Igreja, que o Evangelho se pode continuar a dizer. A encarnação precisa de corpo e Deus precisa de mundo para Se dizer.
O mais relevante é compreender endemicamente, no tutano da experiência, a verdade que mora fora das nossas trincheiras. Só há vida na Igreja com abertura e agora temos a enorme missão de ir tecendo uma Igreja de francas portas, em todos os sentidos.
5- Mais ainda, é no mundo, pelo mundo, com o mundo, que o Espírito Santo se diz.
6- E é por tudo isto que o modelo pedagógico, não só apostólico, mas essencial e estrutural dos cristãos, não é o de gente impecável que vai dizer aos outros como acontece a salvação. Não, esse trilho majestático e unidirecional não tem futuro, porque não é conforme a própria pedagogia de Jesus. Há um dinamismo outro, de escuta, de aprendizagem, de proposta tensional e fluida, que aprende ensinando e que ensina aprendendo.
E o que tem tudo isto a ver com a crise da pedofilia na Igreja portuguesa? É que se trata de uma experiência que confirma aquilo que alguns, nos quais me incluo, já gritavam há muito: não estamos numa Igreja composta de religiosos detentores de uma verdade e de uma prática modelares. E foi de fora, foi o mundo, foram os outros, onde mora agora comprovadamente verdade, que nos pressionaram, que nos ajudaram a ver melhor.
Os mais identitaristas ou receosos de certa diluição cristã podem ficar descansados pois os elementos da democracia, do jornalismo livre, dos valores humanistas, que se alavancaram há séculos e estão na base da sociedade em que vivemos, são eles mesmos, sem nenhuma ingenuidade, fortemente inspirados pelo judaico-cristianismo. Mas isso pouco importa. O mais relevante é compreender endemicamente, no tutano da experiência, a verdade que mora fora das nossas trincheiras. Só há vida na Igreja com abertura e agora temos a enorme missão de ir tecendo uma Igreja de francas portas, em todos os sentidos. É este o rasgo de esperança.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.