Para quê sermos livres e iguais entre nós se não formos antes fraternos?

Vivida na carne afetiva, a fraternidade resulta de um “sentimento de pertença” que nos implica numa dinâmica de ação concreta e de saída de si.

Vivida na carne afetiva, a fraternidade resulta de um “sentimento de pertença” que nos implica numa dinâmica de ação concreta e de saída de si.

Muito se tem dito sobre a mais recente encíclica social do Papa Francisco. Publicada no passado 3 de outubro, Fratelli tutti parece ter surpreendido certas pessoas que não esperavam ver o líder da Igreja Católica aprovar um suposto ideal maçónico, como o da “fraternidade universal”, e sublinhar os termos que compõem o célebre adagio da Revolução Francesa: Liberdade, igualdade e fraternidade. Mais não são que leituras rápidas e superficiais do documento.

Antes de mais nada, convém notar que o Papa se inspira, sobretudo, na figura de Francisco de Assis. A experiência de fé deste santo levou-o a sentir, na sua carne que se faz de afeto, todas as criaturas como irmãs, ou não fossemos todos filhos de um mesmo Pai que está nos Céus. A partir desta experiência fundada no Evangelho, torna-se possível ver no próximo um irmão. O mesmo Pai que está nos Céus une-nos a todos, desde as pessoas de outros credos religiosos até ao sol, sem esquecer, é claro, as árvores e os animais. É nesta mística puramente cristã que se encontra o fundamento da fraternidade “universal” e “integral”, da qual nos fala o Papa na sua mais recente encíclica.

Convém reparar que o sonho de um mundo fraterno, capaz de nos abrir a outrem e de nos unir à criação, não se confunde com qualquer espécie de sincretismo. No fundo, trata-se de uma forma de testemunhar o Evangelho que consiste em vivê-lo. Ao incarnar assim o Evangelho na sua vida concreta, e apesar de historicamente se situar no contexto das cruzadas, o santo de Assis foi abraçar pacificamente o sultão muçulmano Malik Al Jamil. E, tal como ele dizia aos confrades que seguiam a sua regra: “sem negar a própria identidade, quando estiverdes entre sarracenos e outros infiéis não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus” (FT §3). Este mandato de Francisco corrobora a evangelização a partir do testemunho de vida que o Papa visa. Pois, “como crentes, somos desafiados a retornar às nossas fontes para nos concentrarmos no essencial: a adoração de Deus e o amor ao próximo, para que alguns aspetos da nossa doutrina, fora do seu contexto, não acabem por alimentar formas de desprezo, ódio, xenofobia, negação do outro. A verdade é que a violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações” (FT §282).

Se não formos fraternos uns com os outros, a liberdade e a igualdade acabam por se traduzir no individualismo dos interesses mais egoístas que tentamos impor, através da força e do poder, a outrem e ao mundo.

Nesse sentido, o sonho de um mundo unido e aberto à singularidade de cada ser humano não se reduz a uma utopia vazia e inalcançável: surge, antes, no horizonte como um caminho concreto que o discípulo de Cristo é convidado a percorrer. Da mesma forma, a promoção de um mundo pacificado com a colaboração de todos em prol do Bem Comum não se reduz a uma simples estratégica política que dilui o essencial da doutrina cristã: pois nada mais é do que se sentir filho do Pai de todos. A partir desta mística cristã, não se cuida do próximo e da criação por puro dever ético. De facto, através da fraternidade que brota do coração, o cuidado para com o irmão vai muito para além da moral: traduz-se numa ação que satisfaz os nossos desejos mais profundos e nos realiza enquanto pessoas.

Reparemos, portanto, como o Papa, ao enfatizar a fraternidade na esteira de São Francisco, evita repetir o slogan da Revolução Francesa. Enquanto o adagio dos revolucionários do século XVIII colocava a fraternidade em último lugar, o Papa situa-a em primeiro e a outro nível. E, se a Revolução Francesa abriu as portas aos liberalismos políticos e económicos que quase deixaram cair a fraternidade no esquecimento, o Papa Francisco mostra-nos, por sua vez, como a liberdade e a igualdade facilmente se pervertem num mundo que não seja fraterno.

Sem fraternidade, a liberdade significaria o triunfo do mais forte. E a igualdade tenderia a dar lugar à feroz competição entre indivíduos diferentes. Se não formos fraternos uns com os outros, a liberdade e a igualdade acabam por se traduzir no individualismo dos interesses mais egoístas que tentamos impor, através da força e do poder, a outrem e ao mundo. Sem fraternidade, torna-se impossível entrar num processo de “reconciliação”, onde a “justiça”, a “ternura” do “amor” e a “alegria” da “paz” possam acontecer.

Certo. Quando o Papa nos apela a sonhar e a viver assim, podemos julgá-lo como utópico ou naïf. Mas convém ver como ele se esforça por não cair num romantismo vazio que reduz a fraternidade e o amor ao afeto das emoções. Nem só de utopia se faz a Fratelli tutti. Um enorme realismo atravessa todas aquelas páginas, onde a “caridade” é concebida, não como um “sentimento estéril”, mas como o “melhor modo de alcançar vias eficazes de desenvolvimento para todos” (FT §183).

É nesse contexto de enorme realismo que o Papa desenvolve uma interessante hermenêutica da parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Francisco vê na figura do estalajadeiro o papel imprescindível das instituições justas. Além de se aproximar daquele homem que estava meio-morto, o bom samaritano também tem de se relacionar com instituições dotadas dos meios necessários para o curar.

Quando o Papa nos apela a sonhar e a viver assim, podemos julgá-lo como utópico ou naïf. Mas convém ver como ele se esforça por não cair num romantismo vazio que reduz a fraternidade e o amor ao afeto das emoções.

Nesse sentido, a fraternidade não vive apenas de afeto pessoal, mas também de estrutura social e racional. Se o amor se manifesta na proximidade de uma relação concreta, a eficácia do cuidado para com outrem e para com a “casa comum” carece da estrutura sólida de instituições justas e eficientes.  É por isso que a política, segundo o Papa, pode ser um processo através do qual aprendemos a “amar com ternura”, de forma a tornar eficaz o cuidado para com todos, nomeadamente “os mais pequeninos, frágeis e pobres” (FT §194). A narrativa imaginada pelo próprio Jesus, no Evangelho segundo Lucas, convida-nos a viver a tensão entre a relação interpessoal da proximidade afetiva e a justiça que se alcança a um nível político ou social. Por um lado, a caridade concreta não espera tudo das instituições. Muito pelo contrário: começa por agir a um nível local, no imediato da situação, tal como aquele samaritano se aproximou prontamente do seu irmão. Por outro lado, o cuidado para com o próximo só se torna eficaz e duradouro se passar pela mediação de instituições que devemos solidificar nos seus princípios de justiça, dado que “o amor ao próximo é realista, e não desperdiça nada que seja necessário para uma transformação da história que beneficie os últimos” (FT §165). Francisco apela, nesse sentido, a uma reforma tanto da “Organização das Nações Unidades” como da “arquitetura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações” (FT §173). E, a esse propósito, concebe a pessoa singular vinculada à categoria de povo (cf. FT §41, 100, 157-162).

Mais do que um ideal utópico abstrato, a fraternidade revela-se como um dado de facto. Vivida na carne afetiva, resulta de um “sentimento de pertença”, de “unidade”, que nos implica uns com os outros numa dinâmica de ação concreta e de saída de si.

O “diálogo” autêntico surge, assim, como um processo no qual a “cultura do encontro” se concretiza. Nesse processo dialogal, querer encontrar-se com outrem, na sua diferença, vai muito para além de o respeitar com simples tolerância. Enquanto for possível tolerá-lo com indiferença, no seu estilo de vida e nas suas convicções, o encontro fraterno jamais terá lugar neste mundo, pois a fraternidade só acontece quando se sentir “estima” pelo próximo que se revela diante de nós como um filho de Deus (cf. FT §93, 224).

É por isso que a “fraternidade universal” precisa da “amizade social”. Caso contrário, correria o sério risco de se reduzir a um ideal abstrato, executado friamente, a partir dos princípios de sistemas impessoais, onde o afeto da proximidade jamais será evento (cf. FT §142-143).

Não é a partir de uma qualquer ideologia moderna que se percebe a rejeição dos populismos hodiernos e dos neoliberalismos mais extremados por parte do Papa. Nem é por influência do iluminismo que Francisco condena a pena de morte e levanta reservas em relação à noção de “guerra justa”.

Intrinsecamente ligada à “amizade”, a “fraternidade” do Papa Francisco situa-se bem longe dos ideais abstratos do iluminismo moderno, já que “a fraternidade universal e a amizade social (…) são dois polos inseparáveis e ambos essenciais. Separá-los leva a uma deformação e a uma polarização nociva” (FT §142). Não é a partir de uma qualquer ideologia moderna que se percebe a rejeição dos populismos hodiernos e dos neoliberalismos mais extremados por parte do Papa. Nem é por influência do iluminismo que Francisco condena a pena de morte e levanta reservas em relação à noção de “guerra justa”. Se quisermos evitar quer os nacionalismos de exclusão, quer uma globalização que nos uniformiza segundo princípios abstratos e exclusivamente economicistas, teremos de respeitar a legítima diferença do próximo que nos complementa, quando inserido na harmonia da família humana. É o que faz o Papa, ao rejeitar tanto a globalização amorfa como a mentalidade tribalista, ao condenar quer a cultura da “indiferença” ou do “descarte”, quer os monólogos agressivos que hoje proliferam nas redes sociais.

Além disso, empregando expressões que nos levam a recordar o Magistério de Bento XVI, Fratelli tutti não tem pudor em condenar o “relativismo”, sobretudo moral. Com efeito, se “a caridade precisa da luz da Verdade, que buscamos constantemente (…) sem relativismos” (FT §185), “o relativismo” nunca poderá ser “solução”, pois, “sob o véu duma presumível tolerância”, facilmente acaba “por facilitar que os valores morais sejam interpretados pelos poderosos segundo as conveniências da hora” (FT §206).

Em vez de mártires ressentidos contra este mundo que também é nosso, somos chamados a viver do amor de Cristo, fazendo-nos próximos de todos, independentemente da sua cor, etnia ou religião. Não foi, afinal, o que fez o samaritano?

Fotografia: Robin Noguier – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.