É certo que vir apelar à paz na Ucrânia sofrida, ao urgente cessar-fogo, a que a diplomacia entre a Ucrânia e a Rússia seja eficaz no terreno e em espírito, é uma tarefa menos complexa do que a sua concretização. Não devemos porém abandonar o apelo para que a paz seja estabelecida. Aquilo que poderei acrescentar sobre esta tragédia debatida intensamente nos últimos dias um pouco por todo o mundo, resulta de um exercício de reflexão. Na realidade, os cidadãos são livres no voto, mas são todavia impotentes para participarem nas decisões que correm o risco de se tornarem graves para a história das cidades, das nações, dos continentes. Confiamos o poder a quem se dispõe a detê-lo, a quem se encontra motivado e se julga vocacionado para o exercer, enquanto as nossas vidas se encaminham por outros destinos que nos esperam ou que fazemos acontecer. Certamente porque lido diariamente na minha vida com o pensamento literário e até, de certo modo, sobre a «natureza das coisas», sou uma crente no poder da diplomacia (que tem os seus momentos de desenraizamento do espaço público), isto é, no poder construtivo da palavra. Mas as palavras que se escolhem, e o que delas se subentende, são por vezes armas e não sementes.
«Ninguém como Dostoievski nos dá essa realidade da terra russa, com a sua solidão frenética, confissões em que tudo se diz e tudo se cala; em que se suspende com lágrimas a palavra essencial e com um crime o último abraço fraterno.» escreveu Agustina (do artigo Dias Felizes, 1991). Se este confronto reforça uma evidência, é a de que certos discursos que se vão pronunciando têm os seus efeitos no longo prazo tendo, entretanto, sido desconsiderada a sua robustez.
Na história da Europa espelham-se guerras frias ou efectivas. É a ebulição da natureza humana que almeja uma grandiosidade e poderio tantas vezes irracionais, e é este o estado que tende a atingir sejam os menos ou os mais influentes decisores políticos, mas não só, com consequências trágicas que desviam radicalmente o rumo de felizes oportunidades, entretanto desfeitas. Hoje é uma ofensiva contra a Ucrânia, e amanhã em que país, cidade, população será? Sem motivo de admiração, parte das motivações para se levar adiante um conflito bélico são as mesmas desde sempre — territoriais, religiosas ou económicas — ou, recorrendo às palavras de Marguerite Yourcenar, «Toda a minha vida procurei respostas a perguntas que talvez não tenham resposta» («Sistina», O Tempo esse grande escultor). Não obstante, há desde logo duas diferenças neste conflito. A invasão militar da Ucrânia pela Rússia no passado mês de Fevereiro despertou uma movimentação crítica e emotiva à escala mundial, seja por se tratar da invasão de um país soberano com fronteiras com outros países da União Europeia, seja porque um conflito bélico não parecia ter, na actualidade, lugar no espaço europeu.
São estes motivos históricos e culturais que levam o presidente Vladimir Putin a considerar a Ucrânia um «país irmão». Num pensamento primário e algo ingénuo, assim sendo, tal ofensiva jamais deveria ter existido.
Embora não seja da minha competência discorrer sobre a complexa engrenagem em torno desta acção militar, é-nos dito que entre as motivações para esta invasão encontram-se relações/razões históricas e fronteiriças entre os dois territórios. São estes motivos históricos e culturais que levam o presidente Vladimir Putin a considerar a Ucrânia um «país irmão». Num pensamento primário e algo ingénuo, assim sendo, tal ofensiva jamais deveria ter existido. Mas já lemos sobre o irmão que mata o seu irmão desde logo no livro de Génesis, quando Caim matou Abel. As provocações e disputas entre irmãos são milenares e continuarão a ser fatalmente eternas e causadoras de grande desespero. Putin tem uma visão sobre aquele que deve ser o desígnio da Rússia, porventura o verdadeiro legado que ele gostará de deixar a este país, embora o preço a pagar por tal empreitada seja profundamente doloroso e esbarre contra a independência e os desígnios da Ucrânia. E caso Putin não seja exactamente um ser anacrónico, e seja «um homem muito do nosso mundo» («Vladimir Putin Is a Product of Modernity», The Atlantic, Tom McTague), tal hipótese torna este momento a que assistimos particularmente inquietante. O cidadão comum não perceberá de geopolítica, mas tem ao seu alcance meios de informação e de contra-informação, que muitas vezes têm o efeito contrário de o levar a desistir de acompanhar o mundo à sua volta, seja por exaustão, por desinteresse, por desalento, por entrega à profissão e às necessidades básicas de sobrevivência que não se conciliam com as notícias sobre mundos que se desmoronam. Urge fortalecer a convivência democrática entre as nações, tendo em atenção as necessidades e os direitos dos outros.
A destruição da memória histórica é outra forma de aniquilar, e de cortar raízes com um passado que testemunha um percurso e uma identidade própria.
Em poucos dias, este conflito deu origem a uma profunda crise humanitária e a um excepcional movimento solidário, com acções concretas que visam acolher e salvar as vidas de refugiados e atingidos. E estejamos atentos às consequências do previsível desgaste emocional dos milhares de crianças expostas a uma tragédia desta natureza e aos seus efeitos. Na destruição que se faz sentir, encontra-se também vulnerável o património material e imaterial como representação da herança cultural ucraniana. A destruição da memória histórica é outra forma de aniquilar, e de cortar raízes com um passado que testemunha um percurso e uma identidade própria. Num comunicado de James Cuno, presidente do J. Paul Getty Trust, fomos alertados para o facto desta ofensiva ter colocado este legado em risco, onde afirma que «O legado cultural material do mundo é a nossa herança comum, a identidade e inspiração para toda a humanidade. O património cultural tem o poder de nos unir e é fundamental para alcançar a paz.» Neste contexto, cito ainda o primeiro-ministro Boris Johnson, que numa breve e eficaz declaração sobre este conflito aludiu a uma importante causa que cabe aqui realçar: «É uma tragédia para a Ucrânia como é uma tragédia para a Rússia. Tal como a Ucrânia, a Rússia é um grande país com uma história rica e um povo orgulhoso. Tal como a Ucrânia, os poetas, artistas e autores russos moldaram a nossa cultura (…)». Não abandonemos o picante humor de Nikolai Gogol, nascido na Ucrânia, nem a obra que retrata a humanidade tão sofrida quanto redentora pelos olhos de Fiódor Dostoievski, nascido na Rússia, lembrando apenas dois dos seus autores, portadores de misteriosas e geniais formas literárias e criativas.
A dura consciência da nossa fragilidade torna-se inevitavelmente mais aguda em momentos de crise. E assim, uma última palavra para o povo ucraniano e para o seu presidente, Volodymyr Zelensky, verdadeiros defensores guerreiros de uma cultura, de uma história, de um país, de um conceito de liberdade e independência.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.