Quando entramos, pela primeira vez, na galeria de exposição de ourivesaria do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) poderemos, seguramente, indagar sobre a razão da existência de tantas peças de anterior função litúrgica ou paralitúrgica e sobre os motivos e os momentos em que se deu a incorporação desses objetos no acervo do museu. De facto, podemos afirmar que uma parte significativa da coleção de ourivesaria do MNAA que se encontra em exposição tem uma original natureza e função religiosa, e provém, sobretudo, de três ciclos ou momentos distintos nos quais houve uma expressiva transferência de bens patrimoniais eclesiásticos para a esfera do Estado (vd. Carvalho, 1995).
O primeiro momento diz respeito à extinção das ordens religiosas, decretada em maio de 1834, originando o imediato encerramento dos cenóbios masculinos e a incorporação dos seus bens móveis e imóveis na Fazenda Nacional. No caso das alfaias litúrgicas e paralitúrgicas, a maioria acabaria por ser transferida para paróquias que, por necessitarem de objetos indispensáveis para o culto, as requisitavam ao Governo; cerca de um terço (e apenas no caso de peças executadas em metais preciosos) seria transferido para a Casa da Moeda, reservando-se, pelo seu valor histórico e artístico, um número muito reduzido de espécimes para futuro fim museológico e acabando o grosso deste núcleo na fundição ou também, mas em menor número, na venda a particulares. O segundo momento diz respeito ao encerramento paulatino dos conventos femininos, a suceder após a morte da última religiosa – que se verificou sobretudo entre a década de 1880 e a primeira do século XX –, e à transferência dos seus bens para o Estado e, no caso de alfaias, à entrega de algum desse espólio à Academia Real de Belas-Artes de Lisboa ou, a partir de 1884, ao Museu Nacional de Belas-Artes e Arqueologia, antecessor do MNAA (que apenas tomaria a atual designação em 1911). O terceiro e último momento – e talvez o mais relevante, quantitativamente falando – corresponde às consequências da republicana Lei de Separação do Estado das Igrejas (1911) e à nacionalização de muitos bens existentes nas catedrais, igrejas paroquias, paços episcopais, seminários e colégios, tendo nesse contexto sido integradas no acervo do MNAA algumas centenas de peças de ourivesaria. Alguns objetos religiosos de significativa importância que, em 1910, se encontravam nas coleções reais acabariam também por dar entrada no acervo do Museu, por via da Casa Forte do Palácio das Necessidades (onde se encontravam arrecadadas), em vários momentos do século XX, nomeadamente no ano de 1938.
Os cálices românicos de Alcobaça são um eloquente testemunho de uma época e de uma realidade teológica e estética concretas e, em simultâneo, chaves fundamentais para uma melhor compreensão do momento histórico e das orientações que os originaram.
É sobre algumas destas peças que iremos dedicar, a um ritmo bimestral e numa sequência cronológica ascendente, alguns pequenos artigos onde procuraremos destacar algumas peças de uma coleção efetivamente relevante no âmbito do património artístico nacional. Iniciaremos este périplo com os três cálices românicos de Alcobaça, um dos núcleos mais antigos da coleção de Ourivesaria do MNAA e que, pelos vários motivos que aqui tentaremos elencar, configuram-se como objetos verdadeiramente notáveis do ponto de vista histórico, religioso, artístico, patrimonial e identitário.
Após a saída dos monges de Alcobaça do seu mosteiro em novembro de 1833 e com a supressão das ordens religiosas masculinas no ano seguinte, parte do tesouro da Real Abadia de Alcobaça seria transferido para a Casa da Moeda, onde por lá permaneceu até à transferência de dezenas de alfaias em prata, em 1867, para a Academia Real de Belas-Artes de Lisboa. Esta entidade académica, colecionista e patrimonialista acabaria por assumir-se como a instituição gestora e responsável pela abertura do Museu Nacional de Belas-Artes e Arqueologia, em 1884, e em cuja coleção algumas peças do tesouro alcobacence foram integradas, nomeadamente três cálices românicos (século XII), uma cruz processional e uma custódia góticas (século XV).
E o que torna estes cálices efetivamente relevantes? Serão, certamente, vários os motivos e fatores que contribuem para manifesta relevância – ao ponto de estarem classificados, pela lei respetiva, como Tesouros Nacionais –, sendo que destacaríamos o facto de serem provenientes de uma das históricas e mais importantes casas monásticas nascidas ao tempo da fundação da nacionalidade portuguesa (destino privilegiado de patrocínios régios, panteão de reis, tesouro de formidáveis relíquias sagradas e relíquias da história pátria) e umbilicalmente ligada ao primeiro monarca; ao facto de, pelo menos uma das peças, estar associada a uma doação realizada pela rainha D. Dulce, mulher de D. Sancho I; e ao facto de se configurarem como exemplares a um tempo raros e paradigmáticos da arte da ourivesaria românica existente em Portugal.
Foto 1
O mosteiro de Santa Maria de Alcobaça foi fundado em 1153 e constituiu-se, desde muito cedo, com um dos mais importantes cenóbios da Ordem de Cister existentes em toda a Península Ibérica e, seguramente, como o mais relevante mosteiro da ordem sediado em Portugal na conjugação dos planos político, económico e artístico. São Bernardo de Claraval (1090-1153), teólogo, místico, monge e fundador da abadia cisterciense francesa de Clairvaux (Claraval), teria uma participação política decisiva no gradual reconhecimento e legitimação internacional do novo reino de Portugal, fenómeno ao qual se associam, por um lado, a doação de D. Afonso Henriques a Bernardo de Claraval e à Ordem de Cister, em 1153, do vastíssimo território onde se implantaria a abadia e terrenos associados e, por outro, a atribuição à abadia de vastos privilégios pelos primeiros monarcas portugueses.
É este o caso de um dos três cálices do MNAA (Foto 1; MNAA, inv. 89 Our) que, pela inscrição que apresenta, enuncia com precisão alguns elementos documentais importantes, quer a referência ao nome da doadora – a rainha D. Dulce de Aragão, mulher de D. Sancho I –, quer a indicação de que a alfaia se destinaria à utilização litúrgica no altar-mor da igreja abacial. A produção e/ou doação deste cálice à abadia poderá ter ocorrido, como hipótese (vd. Caetano, 1995), entre 1178 e 1188, datas correspondentes, respetivamente, ao arranque da segunda campanha de edificação da abadia e ao primeiro testamento de D. Sancho I. Pelo facto do monarca ter dotado o cenóbio de Alcobaça apenas com rendas e não com alfaias, ao contrário do que sucedera com outras importantes igrejas do reino às quais destinou diversos objetos litúrgicos, coloca-se a hipótese desta ausência testamentária se relacionar com a dádiva pia já então realizada por sua mulher.
Foto 2
Um outro cálice deste conjunto (Foto 2; MNAA, inv. 91 Our) apresenta também uma inscrição, ainda que com menor quantidade de dados documentais que o espécime anterior. Coloca-se a hipótese desta alfaia poder ser de produção anterior ao cálice de D. Dulce, tendo o cálice de oferta régia substituído o outro no serviço litúrgico do altar-mor. Outra sugestão hipotética coloca a utilização do cálice régio nas celebrações mais solenes e o outro nas celebrações ordinárias. (vd. Caetano, 1995; Bastos, Franco e Penalva, 2012). O terceiro cálice (Foto 3; MNAA, inv. 90 Our) não apresenta qualquer informação direta que permita aproximar a sua data de execução e o contexto de incorporação no cenóbio, mas deverá inserir-se globalmente, como os outros dois cálices, na segunda metade do século XII.
Foto 3
Do ponto de vista estilístico e artístico, esta tipologia de cálice, observável nos três exemplares da coleção do MNAA – com uma copa hemisférica e base troncocónica (onde o diâmetro da copa é quase igual ao da base) e com um nó esférico mais ou menos achatado –, corresponde a uma morfologia que vigorou, no espaço europeu, ao longo do século XII e primeiras décadas do século seguinte, como se pode observar num conjunto ainda vasto de alfaias existentes em diversas igrejas e museus. Este modelo, muito divulgado no românico internacional, parece ter sido fixado e disseminado através de um tratado elaborado pelo monge alemão Teófilo, intitulado ‘Das Diversas Artes’ (De diversis artibus ou Schedula diversarum artium), onde também os vários processos relacionados com a produção de um cálice aí também foram recolhidos, como se de um manual de ourives se tratasse. No caso dos cálices de Alcobaça, claramente filiados neste modelo, será interessante notar no intenso despojamento e contenção ornamental que os marca de forma sublime, com assinalável economia de meios e onde se valoriza grandemente a pureza das formas e das superfícies metálicas. Os diminutos elementos decorativos, para além das cruzes inscritas na base, concentram-se no nó das alfaias, visíveis na decoração filigranada no cálice de D. Dulce e na forma de gomos nos outros dois. Tais caraterísticas, sobretudo materiais e ornamentais, não serão alheias, por um lado, a algumas normativas cistercienses a respeito dos materiais em que deveriam ser executados os paramentos e alfaias utilizados nos seus mosteiros – nomeadamente nas orientações do abade cisterciense São Estevão Harding (c. 1060-1134), no Exordium Cisterciensis Coenobii –, bem como a alguns princípios teológicos e estéticos defendidos por São Bernardo de Claraval, como podemos extrair de alguns parágrafos da sua célebre Apologia para Guilherme, Abade:
«À vista das coisas sumptuosas, admirando vaidades, os homens são levados mais a fazer ofertas que a rezar. Assim, as riquezas fazem aparecer riquezas, assim o dinheiro atrai dinheiro […]. Em vez de candelabros, vemos como que árvores levantadas, com muito peso de metal, fabricadas com arte admirável, não mais brilhantes com as velas que lhes são sobrepostas que com as suas pedras preciosas. Que julgas procurar-se com tudo isso? A compunção dos penitentes ou a admiração dos visitantes? Oh! vaidade das vaidades (Ecl. 1, 2), mais insensata que vã! A igreja rebrilha nas suas paredes mas passam necessidade os pobres. Reveste de ouro as suas pedras e deixa nús os seus filhos. Com os bens dos pobres serve-se aos olhares dos ricos. Os curiosos encontram com que deleitar-se e os miseráveis não encontram com que sustentar-se.» (São Bernardo de Claraval, in Apologia para Guilherme, Abade, capítulo XII).
Foto 4
De facto, e ainda que, em tempos posteriores, alguns episódios venham a contrariar estas normativas – como se irá verificar, por exemplo, na doação de um cálice de ouro à abadia, no século XVI –, os três cálices de alcobaça ajustam-se de uma forma bastante evidente a estas premissas teológicas e estéticas. Bastará observar os outros dois cálices românicos existentes em Portugal e analisar as diferenças ornamentais, ainda que formalmente sejam relativamente próximos. Em primeiro lugar, o formidável cálice oferecido pelo nobre D. Gueda Mendes ao Mosteiro de Refóios de Basto, datado de 1152 (Foto 4; MNMC, inv. 6030;O1), igualmente executado em prata dourada (com um nó filigranado muito próximo ao do cálice de D. Dulce) mas sobejamente povoado por elementos ornamentais e iconográficos, como sejam a decoração vegetalista e a representação do tetramorfo na base ou a figuração de Cristo e de onze apóstolos, em enquadramento arquitetural, na copa. Em segundo, o cálice oferecido por D. Sancho I e, também, D. Dulce de Aragão, em 1187, ao Mosteiro de Santa Marinha da Costa, em Guimarães (Foto 5; MAS, inv. O-35), que apresenta uma copa totalmente lisa mas ornamentação já mais intensa na base, no nó e na haste.
Foto 5
Se neste século XII irão conviver variantes estéticas distintas associadas a pressupostos teológicos diversos, e se os cálices de Alcobaça facilmente se podem associar aos paradigmas artísticos promovidos por Cister e por São Bernardo, talvez se possa fazer uma analogia semelhante entre os outros dois cálices românicos existentes em Portugal – e, certamente, a grande maioria dos cálices românicos que foram produzidos na Europa – e os ideais defendidos pelo célebre e influente abade Suger (1081-1151), de Saint-Denis, a respeito das virtudes contemplativas e místicas do ornamento e da riqueza material no espaço sagrado:
«Por isso, quando pelo amor que nutro pela beleza da casa de Deus, a caleidoscópica beleza das pedras preciosas me distrai das preocupações terrenas e, transferindo a diversidade das santas virtudes das coisas materiais para as imateriais, a honesta meditação me persuade a conceder-me uma pausa… parece-me que me vejo numa região desconhecida do mundo, que não se situa completamente no lodo terrestre, nem tão-pouco se encontra colocada na pureza do céu, e parece-me então estar em condições de transferir-me, com a ajuda de Deus, desta região inferior para a outra superior, através de anagogia.» (Abade Suger, in De rebus in administratione sua gestis; apud Eco, 1989).
Ainda que os princípios sejam quase antagónicos, São Bernardo parece ainda tolerar alguns exageros quando realizados no espaço público da igreja (mas não nos espaços reservados ou destinados aos monges):
«Que valem aí essas bonitas imagens, onde tão frequentemente se enchem de pó? Por último, que vale isso para os pobres, para os monges, para a gente espiritual? A não ser que, aqui, contra o já lembrado verso do poeta, se responda com o versículo do profeta: ‘Senhor, eu amei a beleza da tua casa e o lugar onde habita a tua glória’ (SI. 25 (26). 8). De acordo; aceitemos que isso se faça na igreja porque, embora seja mau para os vaidosos e avarentos, não o é, todavia, para os simples e devotos. De resto, nos claustros, diante dos irmãos a fazer leituras, que faz aquela ridícula monstruosidade, aquela disforme beleza e bela disformidade? » (São Bernardo de Claraval, in Apologia para Guilherme, Abade, capítulo XII).
Como refere Umberto Eco, e ainda que, na idade Média, haja um conceito de beleza inteligível e metafísica, «quando um filósofo medieval fala de beleza não visa somente um conceito abstracto mas se refere a experiências concretas» (Eco, 1989). Em suma, os cálices românicos de Alcobaça são um eloquente testemunho de uma época e de uma realidade teológica e estética concretas e, em simultâneo, chaves fundamentais para uma melhor compreensão do momento histórico e das orientações que os originaram.
Informações Úteis
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terça a domingo: 10h00-18h00
Rua das Janelas Verdes 1249-017, Lisboa (Mapa Google)
Contactos
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Preços
Normal: Exposição: € 6,00 | Exposição + Museu: € 10,00
Criança (até aos 12 anos inclusive): Exposição: Gratuito | Exposição + Museu: Gratuito
Jovem (13 a 18 anos): Exposição: € 3,00 | Exposição + Museu: € 9,00
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