“O vírus do nacionalismo atingiu fortemente a Europa”

A poucos dias das europeias, Viriato Soromenho-Marques afirma: 'se nos perguntarmos qual a grande ideia de cada candidato, não há nenhuma grande ideia, porque não há sequer uma pequena ideia'

A poucos dias das europeias, Viriato Soromenho-Marques afirma: 'se nos perguntarmos qual a grande ideia de cada candidato, não há nenhuma grande ideia, porque não há sequer uma pequena ideia'

Doutorado em Filosofia, defensor das questões ambientais, escritor e professor catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, Viriato Soromenho-Marques tem-se dedicado também, ao longo dos anos, à análise política e da construção europeia. Tem vários livros publicados, sendo que o mais recente (Depois da Queda. A UE entre o Reerguer e a Fragmentação) uma reflexão sobre a situação da União Europeia, a fragilidade das suas instituições e os perigos e tensões que colocam em risco o projeto europeu. Em vésperas das eleições para o Parlamento Europeu, Viriato Soromenho-Marques recebeu o Ponto SJ no seu gabinete na Faculdade de Letras, em Lisboa, para uma conversa profunda sobre a Europa.

Como olha para a campanha eleitoral das eleições europeias?

É uma campanha em que, de certa forma, o tema da Europa é um lugar vazio. Começou com uma declaração de António Costa, num comício ainda antes da campanha onde disse que devíamos encarar as eleições europeias como a primeira parte das eleições legislativas, dando ao Governo a vitória nas eleições. Essa declaração atraiçoa totalmente o espírito destas eleições, que são para o Parlamento Europeu, para eleger deputados que vão representar o duplo interesse do país e da Europa e, através do diálogo e compromisso, tentar definir essa coisa complicada que é o melhor interesse dos europeus. A ideia de que os deputados portugueses vão defender exclusivamente o interesse nacional é uma ideia pobre. E mais pobre ainda é centrar o debate na política doméstica. A campanha começou com o “family gate”, lançado pelo eurodeputado do PSD Paulo Rangel, e prosseguiu “heroicamente” no plano doméstico, numa zona de segurança, sem entrarmos em questões complexas como a união monetária ou o futuro do euro, a convergência ou o défice democrático, com a desorientação de alguns partidos no que toca à contagem do tempo de serviço dos professores. Se nos perguntarmos qual a grande ideia de cada candidato, não há nenhuma grande ideia, porque não há sequer uma pequena ideia.

E que questão gostaria de introduzir no debate?

A questão que tratei no livro que publiquei em abril, Depois da Queda. A UE entre o Reerguer e a Fragmentação (Editora Temas e Debates/Círculo de Leitores), e que recupera uma outra que já tratei num livro em 2014, Portugal na Queda da Europa, e que era questão do processo da construção europeia e do lugar de Portugal nesse processo. Nessa altura tinha não só uma preocupação de diagnóstico, mas também uma preocupação terapêutica, e desenvolvi demoradamente a questão da democracia e do federalismo como instituições e regimes defensáveis para resolver o problema europeu. Desta vez, a única coisa que procuro fazer é tentar encontrar uma espécie de ponto de Arquimedes, o centro nevrálgico da crise europeia, na perspetiva do diagnóstico. Gostaria de partilhar com eleitores, eurodeputados e candidatos a minha visão para que fosse discutida, deixando a questão terapêutica e programática para quem tem as mãos na massa. Não pode haver boa terapia sem bom diagnóstico. É fundamental que tenhamos a coragem de fazer esse debate.

O que está a acontecer parece-me dramático: considerar que a união monetária está completa.

O que está a acontecer parece-me dramático: considerar que a união monetária está completa. Isso começou por acontecer nos países mais ricos da União Europeia, para quem a união monetária funciona relativamente bem e não é problemática. Vive-se na ilusão de que o processo está terminado, as coisas são como são e vão ficar como estão. É a nova normalidade. Mas analisando bem a situação não é isso que se passa. Há muitas tensões na arquitetura do euro que todos os dias provocam problemas. Não discutindo essas tensões em países como Portugal, acabamos por aderir a um consenso negativo, perverso, que é o de considerar que uma coisa que devia ser reformada e que não é saudável, que é a raiz de desigualdades e tensões, é inamovível e normal. Quando os candidatos não trocam entre si impressões sobre quais deveriam ser as melhores reformas, estão a aumentar, pelo silêncio e apatia, este consenso perverso que está a erodir a Europa. E isto vai levar, e não é uma profecia, qualquer analista o sabe, ao reforço significativo dos partidos do nacionalismo mais radical. Infelizmente, o nacionalismo é o que domina na Europa, um nacionalismo mais liberal, mas desta vez teremos nacionalistas iliberais que acham que a democracia pode ser submetida a amputações significativas sem problemas. E isso é mau. Creio que não acontecerá no caso português. Por razões várias, temos estado fora dessa vaga do populismo mais tradicional. Mas, não tendo novas ideias, estamos a contribuir para que esse consenso negativo seja a nova normalidade.

O que considera problemático no desenho do euro?

É preciso ter muito cuidado, quando discutimos temas europeus, com o problema dos falsos nomes. Há nomes errados, em que não há correspondência entre o objeto e o enunciado. Por exemplo: “a crise das dívidas soberanas”. Considera-se que o que levou os países a serem intervencionados em 2010 foi o excesso de dívida pública. E isso é claramente uma falsificação da realidade objetiva. Há uma confusão entre causas e efeitos. O que aconteceu foi o seguinte: em virtude dos defeitos originais da Zona Euro, avançámos para uma moeda comum, com todas as suas consequências, sem termos um conjunto de garantias regulatórias do sistema financeiro. Tínhamos o Pacto de Estabilidade e Crescimento, dois regulamentos de 1997, que tinham como objetivo garantir que os Estados não entravam em processos inflacionários, estabelecendo-se o limite de 3% para a inflação e também de 3% para o défice orçamental, exigindo que os Estados não aumentassem a sua dívida pública para mais de  60% do PIB. Mas os Estados não são os únicos atores de uma União Monetária. Há outro ator muito importante que é a banca, o sistema financeiro. E já antes do Euro, a orientação da Comissão Europeia para o funcionamento da Zona Euro relativamente aos bancos foi dizer-lhes: “fazei o que vos aprouver”, uma atitude de completa ausência de regulação. Estamos a falar de situações deste género: a licença bancária era conferida por autoridades nacionais, mas a monitorização prudencial era feita pelo banco central de cada país, não pelo Banco Central Europeu. Mas as operações bancárias davam-se em todo o espaço europeu.

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Fotografia de Ricardo Perna

E havia regras diferentes em cada país?

Na prática era isso que acontecia! Foi um período de licenciosidade, de total ausência de disciplina. E nós temos as histórias patéticas dos nossos banqueiros que foram tomados por esse vírus, que se endividaram para comprar outros bancos. Banqueiros que escreviam livros hagiográficos sobre si próprios, sobre a forma como tinham enriquecido e de como era boa [ri-se]a vida no sistema do euro desregulado. Foi na sequência dessa libertinagem financeira – não encontro outro nome mais simpático – que se geraram as grandes falências ou proto-falências no sistema bancário. Isso aconteceu em toda a Europa. Começou nos EUA, mas foi-se alastrando. A banca alemã estava completamente comprometida com a questão do subprime americano, da especulação imobiliária americana. Calcula-se que 20% do PIB alemão- qualquer coisa como 700 mil milhões de euros- foram evaporados no subprime. E, depois, temos os casos do BPP e do BPN que foram ainda apanhados no tempo do Governo Sócrates.

O negócio bancário hoje, e é impressionante como uma coisa tão importante seja desconhecida por tanta gente, foi submetido a uma desregulação deliberada de natureza ideológica.

O negócio bancário hoje, e é impressionante como uma coisa tão importante seja desconhecida por tanta gente, foi submetido a uma desregulação deliberada de natureza ideológica. A vitória dos teóricos do neoliberalismo, nomeadamente de uma pessoa inteligentíssima chamada Friedrich Hayek, teve um efeito perverso. O impacto das suas ideias na vida de todos nós é mortífero. Prevaleceu a ideia de que seria possível ter um sistema financeiro em que a emissão monetária era retirada das mãos do Estado. Nem o Milton Friedman acreditava nisso. Os bancos têm um conjunto de regras prudenciais, que respeitam ou não, que também foi posto em causa no processo de desenvolvimento do euro. O BCE fechou os olhos. A taxa das reservas mínimas obrigatórias que os bancos deviam ter para garantir os empréstimos que faziam baixaram estrepitosamente. Estava-se a fazer acrobacias num trapézio sem rede. Quando o Lehman Brothers aconteceu, houve o processo de chamada à realidade, e os bancos ficaram cheios de imparidades, dívidas. E o que aconteceu, tirando o caso da Islândia, foi os países terem que se endividar para salvar os seus bancos. E salvar os seus bancos porquê? Porque se criou outra coisa perversa. A zona euro é, tanto quanto sei, a única zona significativa do mundo em que o Banco Central está proibido de financiamento monetário do Estado. Uma das regras fundamentais do BCE é que não empresta diretamente aos estados. E isso significa que quando os estados precisam de financiamento têm de ir à banca. A calmaria que se vive atualmente deve-se ao facto do presidente do BCE, Mario Draghi, ter interpretado à sua maneira as regras do BCE. No fundo, está a fazer financiamento monetário da economia mas indiretamente. Como é que ele faz isso? Aceita como colaterais as obrigações de dívida pública que os bancos têm.

Mas em que se traduziu a desregulação bancária?

Para termos uma ideia: entre 2007 e 2010, assistimos a uma coisa, no mínimo, curiosa. Portugal e a Alemanha estavam quase iguais na dívida pública. Portugal tinha uma dívida pública correspondente a 67% do PIB e a Alemanha 65% (ligeiramente acima dos 60% que estavam definidos). A Irlanda tinha 25%, tinha uma folga imensa para se endividar. A Grécia era o único país que já estava numa zona preocupante, porque se tinha endividado para os Jogos Olímpicos de 2004, e por causa do negócio dos submarinos alemães. Mas, na dívida privada, a Grécia estava e está melhor do que nós. A nossa dívida privada é terrível; devemos, no conjunto do público e privado, qualquer coisa como 730 mil milhões de euros. E o que aconteceu nesta altura? Ao contrário daquela “antropologia comparada” da Chanceler Merkel (para citar Adriano Moreira), que dizia que há países que estão a viver acima das suas possibilidades, todos os países se endividaram para salvar os seus bancos. Todos, todos! O aumento da dívida pública média na União Europeia entre 2007 e 2010 roçou os 20%. Há casos dramáticos como a Irlanda, que passou para 90%. A Irlanda foi devorada pelos seus bancos, sacrificou-se pelos seus bancos, para salvar um sistema financeiro que se comportou da forma mais pornográfica possível. E não há nenhum banqueiro que eu conheça que tenha sido objeto de qualquer investigação e, muito menos, de prisão. Toda a gente se endividou, incluindo a Alemanha, que aumentou em 19% a sua dívida pública. E há aqui uma falácia de casualidade. Apresentam-se como causas as consequências. A dívida pública aumenta porquê? Porque o sistema financeiro se endividou e estava em colapso. E porque é que estava em colapso? Porque não havia regulação.

Poderão dizer-me: é muito fácil ser profeta retrospetivo. Mas será que estamos a ser profetas retrospetivos? Na história económica recente não teremos exemplos que poderiam ter levado os arquitetos da zona euro a tomar decisões diferentes? Temos. Temos o exemplo dos EUA.

A história tem a resposta ao problema, só que a ideologia cega.

Na grande depressão…

….e no auge da crise do sistema bancário americano em 1933-34, quando Rossevelt toma posse e cria um sistema de união bancária, de que a nossa recente versão é uma triste imitação. A união bancária que a Europa começa a construir em 2011, e que continua em curso, é uma rústica imitação do que fizeram os americanos e que funciona lindamente. Nos EUA há falências bancárias todos os anos e as coisas continuam a funcionar tranquilamente, há garantias. Eles criaram um sistema que gerou confiança – coisa que cá não existe. A garantia europeia de depósitos está sempre a ser adiada… para 2024. Quem é que está contra? Evidentemente, a Alemanha e a Holanda, que não querem contribuir para esse fundo europeu que é a única possibilidade de termos confiança no sistema bancário. Há uma diretiva desde 1994 que garante, em caso de falência de um banco, 100 000 € por depositante e por banco. Mas essa garantia atualmente é feita pelos estados nacionais. Se um Estado está endividado, está em risco de falência, qual é a credibilidade dessa garantia? Nenhuma! Por isso é que é necessária uma garantia da união. Os americanos criaram uma garantia federal, que atualmente está fixada em 250 000 dólares. E por isso é que, ao contrário da Europa, nos EUA não há corridas aos bancos. Fenómeno que em Portugal resultou, em 2011, numa fuga para os bancos alemães. Muitas economias foram colocadas em bancos alemães e suíços porque as pessoas não acreditavam na capacidade do estado português de ressarci-las em caso de falência de um banco sistémico, como foi mais tarde o BES.

A história tem a resposta ao problema, só que a ideologia cega. Os ideólogos são cegos. Uma das coisas com que nos surpreendemos quando analisamos as revoluções comunistas na China e na União Soviética é com a estupidez. A quantidade de ignorância e estupidez que causou milhões de mortos. Nem são as suas convicções, é a falta de preparação e competência. Uma das coisas mais incríveis quando analisamos o modo como funciona a União Europeia é a quantidade de gente incompetente que está em Bruxelas nas cadeias de comando… a quantidade de disparates. Lembra-se do Jeroen Dijsselbloem, o anterior presidente do Eurogrupo?

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Fotografia de Ricardo Perna

Sim!

Era um tipo engraçadíssimo… porque era completamente ignorante. E quando tomou posse estreou-se na crise do Chipre em 2013 de forma muito curiosa. Houve uma reunião de emergência em que criaram um sistema, que continua em vigor, que estabelece que, em caso de falência de um banco, os acionistas perdem o dinheiro todo, e depois há uma hierarquia de perdas. Os grandes depositantes também perdem, só que (eu não sei o que é que se passou com aquelas pessoas…) puseram também os depósitos de 100 000 € a pagar uma percentagem: 6 ou 7%, violando a legislação europeia. Dijsselbloem não percebeu nada, nem nunca percebeu grande coisa. (Para ser chefe não é preciso perceber nada, é preciso é estar bem conectado). Mas e os ministros das finanças que lá estavam? Não sabiam que estavam a infligir a lei europeia? Depois aquilo foi emendado… mas o voluntarismo com que as coisas são feitas, num espírito de jogo, de aposta, na crença de que vai tudo correr bem…

Mas retomando a questão do desenho do Euro e dos seus problemas…

O que é que nós precisamos para ter uma União Monetária. Que se chama União Económica e Monetária… mais um falso nome. Chama-se União Económica e Monetária e pressupõe-se que existe cooperação económica, governo económico. Mas não há nada…

E como se manifesta isso?

O que existe é competição económica e fiscal. Não há cooperação económica entre os parceiros europeus. Pelo contrário, o espaço do euro é, infelizmente, usado de forma muito violenta para conquistar nichos de mercado, dentro dos próprios mercados europeus. Com uma agravante, para mim inaceitável mas a que toda a gente fecha os olhos, que é a ausência de uma política fiscal comum que evitasse uma fuga organizada e tolerada ao fisco. Há países, como o Luxemburgo, que são paraísos fiscais, o seu negócio é a fuga ao fisco. E há uma conversa moralista e cansativa de que se vai combater a fuga ao fisco, mas não se consegue nunca fazer isso. É um jogo de soma nula, em que toda a gente procura ganhar exatamente o que o outro perde. As nossas empresas do PSI 20 pagam impostos onde? Na Holanda! Nós não temos essa hipótese e fazemos o quê? Vamos tirar aos reformados da Finlândia e da França. É necessária uma política económica que não resulte da pseudo soma dos interesses nacionais, mas que resulte de um olhar europeu. Só se houver uma legitimidade própria constitutiva e constitucional europeia é que poderemos ter pessoas que colocam a sua inteligência ao serviço da causa europeia. Porque são eleitas para isso e responsabilizadas por isso. São pessoas que, necessariamente, terão que fazer parte de um sistema de governo, que não é a Comissão Europeia, que não é governo nenhum. Um sistema de governo com legitimidade própria, sustentada em eleições, com um orçamento próprio e uma responsabilidade perante os seus eleitores, os cidadãos europeus. E isso é absolutamente fundamental, porquê? Porque em qualquer união a sério existe competição entre estados nacionais e governo da união. A Europa, se sobreviver e progredir, não vai ser exceção. Haverá sempre conflitos entre cada um dos Estados e o governo da união. Como acontece nos EUA, na Índia, ou no Canadá.

Ou com as autonomias?

Ou com as autonomias, ou entre os municípios e o governo da República, no caso português. A política é um espaço de conflito institucionalizado e desejavelmente pacífico. Mas nós na Europa não temos conflito nenhum.

Temos uma estrutura cada vez mais monstruosa incapaz de enfrentar os desafios que estamos a sentir hoje. E que, em vez de se elevar à altura dos problemas, se vai amesquinhando cada vez mais.

Temos uma estrutura cada vez mais monstruosa incapaz de enfrentar os desafios que estamos a sentir hoje. E que, em vez de se elevar à altura dos problemas, se vai amesquinhando cada vez mais. Em tudo. Diga-me uma coisa em que a União Europeia tenha uma resposta sensata: defesa, migrações, desemprego jovem, política de energia? A política de energia é uma vergonha. Tínhamos a possibilidade de, em 10, 15 anos, nos tornarmos uma potência energética baseada em energias renováveis, autónoma, sem necessidade de recorrer à Rússia. E vemos a Senhora Merkel a criticar o Putin pela intervenção na Krimeia, mas ao mesmo tempo o gasoduto, o Nord Steam 2, foi assinado em 2018. E durante 20, 25 anos a Alemanha vai depender do gás natural russo. Porque não fez isso com Portugal e Espanha que têm energia renovável a mais? Ou com a França? Porque há um gargalo energético em França que impede que a energia produzida em Espanha e Portugal atravesse essa fronteira. [faz um desenho enquanto explica]. Em vez de termos um projeto europeu que permita alargar essa passagem, e irradiar a eletricidade das nossas barragens, centrais fotovoltaicas, centrais eólicas, podendo expandir-se até à Escandinávia e a Alemanha para acabar com o carvão, continua-se a subsidiar o carvão na Alemanha.

O que é necessário para que uma União Monetária funcione?

Há quatro condições necessárias: a circulação de capital; a circulação de pessoas; e mais duas coisas que não temos: cooperação económica (uma política económica que olha, por exemplo, para o setor têxtil a partir de uma perspetiva europeia e não portuguesa, italiana ou espanhola, fazendo com que essa perspetiva europeia se reflita em acordos internacionais, como acontece no caso da pesca, impedindo um processo de destruição de capacidade instalada); e um sistema de compensação para os choques assimétricos. Ou seja, em caso de haver uma crise internacional em que uma região ou um país sofre mais do que os outros, termos um sistema de compensação para permitir que essa zona seja socorrida. Isso chama-se orçamento. Precisaríamos de um orçamento europeu para fazer transferências entre regiões mais ricas e mais pobres, como qualquer orçamento faz. Não temos isso. 46% da riqueza europeia é gerida pelos estados e apenas 1% pela Comissão Europeia. Uma situação pró-federal ou pré-federal apontaria para um orçamento que seria entre 5 a 7% do PIB europeu. Mesmo que fossemos para um intervalo menor seria cinco vezes mais do que é atualmente. O que deixaria os populismos sem argumentos.

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Fotografia de Ricardo Perna

Mas em que é que isso tiraria argumentos aos populismos?

A partir do momento em que temos recursos europeus podemos aplicá-los a políticas europeias, a solucionar problemas europeus. Por exemplo, a questão dos refugiados. Qual é o grande problema dos refugiados? Dois países foram muito atingidos: Itália e Grécia. E isso em cima de uma situação económica e social muito difícil. A Grécia perdeu 25% do seu PIB por causa da austeridade forçada. Mas a Itália, que é talvez o país que mais sofreu com a entrada no euro, talvez mais que Portugal, está em estagnação há 30 anos e recebeu cerca de 600 mil refugiados. Um orçamento europeu permitiria apoiar a Itália e tornar a sua situação mais aceitável. Por muito sentido do outro que as pessoas tenham, ao sair à rua e ver pessoas que dormem no chão, pobres, abandonadas, sem nenhuma capacidade de integração, isso cria um sentimento de mal-estar e insegurança. E esta tem sido uma arma muito grande para os que querem transformar isto numa questão étnica e racial.

Outro exemplo: há um grande negócio que é a travessia do Mediterrâneo. Há pessoas que têm feito fortunas com isso. Isso é combatido com os meios navais da Grécia e da Itália. Se tivéssemos uma guarda costeira europeia, teríamos a Europa a dar resposta a problemas comuns. Com esse orçamento de 5%, já poderíamos ter uma participação europeia no subsídio de desemprego. E teríamos uma forma de atenuar a injustiça que é termos engenheiros formados na Grécia, em Itália e em Portugal que estão a trabalhar, a pagar impostos e a gerar riqueza em países como a Alemanha, a Holanda ou na Escandinávia, que não tiveram custos nenhuns com a sua formação. E não há nenhum mecanismo de compensação. Se resolvermos o problema do governo financeiro, do governo económico, isso implica a criação de um governo responsável por esse orçamento que dê a cara por isso, uma integração política, mas limitada. Nesse cenário de 5%, os estados mantinham ainda a gestão de 42% dos recursos. Os países manteriam as suas constituições e responsabilidades, mas nas áreas de intervenção exclusiva da União Europeia teríamos a capacidade de fazer alguma coisa.

Significaria passar de uma ideia de concorrência para uma ideia de coesão?

Sim. E de cooperação, de ter um governo normal. Nos EUA, no Canadá, não percebem como é que ainda continuamos aqui.

Porque é que o federalismo, que até ao início dos anos 90 era discutido com normalidade, se tornou um tabu?

Porque o vírus do nacionalismo atingiu fortemente a Europa. É um vírus estranho. Porque, por um lado, temos isso e, por outro, temos uma globalização financeira.

Porque o vírus do nacionalismo atingiu fortemente a Europa. É um vírus estranho. Porque, por um lado, temos isso e, por outro, temos uma globalização financeira. Temos um capital sem pátria e temos um discurso dos governos que é pseudo patriótico. E quando se fala dos populistas serem nacionalistas é preciso não esquecer que a diferença aqui é entre dois tipos de nacionalismo. Nós temos um nacionalismo iliberal destes novos líderes da Itália, da Polónia ou da Hungria.

Aqueles a que normalmente se associam os populismos…

Exatamente. E em que se defende modelos de democracia sem separação de poderes, com uma dependência do poder judicial face ao poder executivo, sem liberdade de imprensa, democracias ditas musculadas. Mas temos governos liberais que também são nacionalistas. Quando, por exemplo, a Alemanha se recusa a respeitar uma regra de 2011 que impede que haja excedentes externos superiores a 6% do PIB (o que é já excessivo!), e mantém consecutivamente excedentes de 8,5%…

E que destino se poderia dar a esses excedentes?

Neste momento não há orçamento europeu e não poderia haver transferências. Mas poder-se-ia aumentar o salário dos trabalhadores alemães, que é baixo. Os sectores sindicalizados têm boas condições, mas o trabalho feminino, por exemplo, é muito mal pago. Há milhões de pessoas que vivem dos chamados minijobs e que são muito mal pagas. Podia-se investir mais em obras públicas a que também poderiam concorrer empresas dos países que estão com mais dificuldades. E as obras públicas na Alemanha não seriam coisas a mais, eles precisam mesmo. Mesmo sem o orçamento, com um pouco mais de cooperação económica, a Alemanha poderia ter políticas de parceria com outros países da UE. O tratado de Lisboa não proíbe acordos de cooperação reforçada entre alguns países. Esse não seria para mim o melhor método, mas permitiria um pouco mais de solidariedade organizada e mutuamente vantajosa.

Pegando num tema que lhe é caro. De que forma a visão antropológica da natureza presente na Laudato Si pode ser inspiradora para responder aos temas de que fomos falando?

A Laudato Si foi feita de maneira muito dialogada. O Papa reuniu-se com muitas pessoas, em particular com cientistas, e procurou inspiração no Outro, na comunidade e no pensamento partilhado. É um texto admirável, integrador, que está dentro do melhor da ciência conhecida hoje, mas que alarga essa visão a outros domínios. Tem uma dimensão ética, social, económica. Do ponto de vista científico, cobre a Academia e vai para lá dela. A ideia essencial da Ecologia Integral é chamar a atenção para o facto da utopia tecnocientífica da modernidade, que implica uma separação brutal entre o interesse humano e o interesse do resto do mundo, estar a chegar à exaustão.

É necessário retomar uma imaginação do futuro voltando à raiz clássica, à raiz ético-política. Não se trata de abandonar a tecnologia e a ciência. Trata-se de abandonar uma visão totalmente perniciosa da autonomia da ciência e da técnica, a ideia segundo a qual se temos uma boa tecnologia, não precisamos de pensar nem no bem, nem no que é justo. Está provado à exaustão que precisamos de ter um enquadramento ético para o uso da tecnologia, sob pena de nos perdermos. Hoje em dia, a última fronteira da expansão tecnológica é a própria humanidade, através das biotecnologias, através dos pós-humanismo e transumanismo. Já se fala em ciborgs, em fazer o upload do cérebro humano para máquinas para termos imortalidades cibernéticas…. É uma loucura! Mas é uma loucura que passa por futurismo, porque perdemos a noção de que não estamos sozinhos no mundo e de que existe uma alteridade. A Laudato Si apela a que reconstruamos os laços cortados com o mundo dos outros, dos mais pobres, dos que não são como nós, dos que pertencem a outras culturas, quer também com os animais, as outras espécies, com a terra, a beleza, com o milagre da vida.

E há um paralelo entre essa visão integral da ecologia e uma visão mais integral da política?

Com certeza. Se a Europa for capaz de se integrar, será não só uma vitória para a Europa, mas para o mundo. Se não conseguirmos também será uma derrota para todos nós, deixaremos o caminho aberto para as velhas hegemonias, as hegemonias baseadas na força.

 

Fotografias de Ricardo Perna

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.