Mas pelo que disse Jesus Cristo nosso Redentor, que era verdadeiramente Seu Corpo que O oferecia sob a espécie do pão, a Igreja de Deus acreditou perpetuamente e o mesmo declara novamente o Santo Concílio que pela consagração do pão e do vinho, são convertidas: a substância total do pão no Corpo de nosso Senhor, e a substância total do vinho no Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, e essa transformação é oportuna e propriamente chamada de Transubstanciação pela Igreja Católica (…). Não resta, pois motivo algum de dúvida de que todos os fiéis Cristãos tenham de venerar este Santíssimo Sacramento e prestar-lhe, segundo o costume sempre seguido pela Igreja católica, o culto de adoração que se deve a Deus (…)
(Concílio Ecuménico de Trento, Sessão XIII, 11 de outubro de 1551, excertos)
O Concílio de Trento (1545–1563) marcou de uma forma profunda a vida da Igreja Católica. Procurando dar resposta à divisão que se vivia na Europa cristã decorrente da Reforma Protestante, nele se produziu um grande conjunto de decretos e reformas de natureza dogmática e disciplinar. Se, por exemplo, os protestantes negavam a presença real de Cristo no pão e no vinho consagrados, em Trento reafirmou-se inequivocamente o dogma da Transubstanciação. A partir daqui, múltiplas iniciativas procurarão revalorizar o culto eucarístico, incluindo-se a fundação de inúmeras irmandades do Santíssimo Sacramento que, localmente e um pouco por todo o reino, assumiram responsabilidades nessa dinâmica devocional.
As custódias, destinadas à exposição, procissão e bênção do Santíssimo Sacramento, terão, neste contexto, uma importância crucial. Ainda que a génese deste objeto litúrgico se possa associar ao surgimento da festa do Corpus Christi – realizada pela primeira vez em Liège, em 1246, e universalizada para toda a Igreja por bula papal de 1264 – e ao seu desenvolvimento e crescimento no espaço público no século XIV (nomeadamente através de procissões), o concílio ecuménico realizado na cidade italiana de Trento marcará profundamente a história desta tipologia de alfaia eucarística, que se fará quase obrigatoriamente presente em qualquer igreja. Será no final do século XVI que surgirá um modelo de custódia que larga fortuna terá ao longo de todo o século XVII e com importantes manifestações ainda durante as primeiras décadas de Setecentos.
Possivelmente executada entre os anos de 1600 e 1625, esta alfaia é proveniente do Convento de Santa Clara de Beja, tendo integrado a coleção do Museu Nacional de Belas-Artes e Arqueologia (antecessor do MNAA) em 1896, após a morte da última religiosa e a consequente incorporação do património conventual na Fazenda Nacional.
Este modelo, que podemos designar por custódia de colunas ou em templete, tem na custódia-cálice do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) que aqui apresentamos um exemplo paradigmático. Possivelmente executada entre os anos de 1600 e 1625, esta alfaia é proveniente do Convento de Santa Clara de Beja, tendo integrado a coleção do Museu Nacional de Belas-Artes e Arqueologia (antecessor do MNAA) em 1896, após a morte da última religiosa e a consequente incorporação do património conventual na Fazenda Nacional.
Esta alfaia não é, seguramente, a mais excecional entre as demais, nem um exemplar digno dos mais profundos encómios relativos à sua qualidade artística, material e técnica, ainda que seja uma obra de ourivesaria de cuidada execução. Mas, na simplicidade das suas formas, assume bem o modelo que configura, apresentando igualmente uma característica comum a muitas custódias de Seiscentos: o facto de ser uma custódia-cálice, associando, num único objeto, duas funções. Esta solução permitia juntar as duas espécies eucarísticas, apresentando assim um importante contributo simbólico e devocional.
O padre e historiador da arte António Nogueira Gonçalves referiu que a sua origem se pode associar às cerimónias de Quinta e Sexta-Feira Santas, mais concretamente ao contexto da então designada Missa dos Pressantificados (in “Custódia de Colunas”, Mundo da Arte, nº 7, 1982). Para além disso, permitiria também, objetivamente, uma importante economia de recursos no que diz respeito à encomenda de alfaias litúrgicas, ainda que o ilustre estudioso exclua que tenha sido esse o motivo que originou a associação de uma custódia a um cálice.
Tal como qualquer outra custódia de colunas (designação que já a historiografia artística oitocentista consagrara), a custódia-cálice proveniente de Beja apresenta, sobre um habitual cálice de base redonda, um hostiário em forma de templete (um pequeno templo). Este constitui-se por uma base ou plataforma, que encaixa no cálice, dela partindo lateralmente um conjunto de colunas – entre as quais se dispõe o redondo viril – que suportam um entablamento coroado por uma cúpula com lanternim. É como se o hostiário resultasse de uma livre utilização de elementos arquitetónicos, não necessariamente organizados de acordo com as prescrições da tratadística e das ordens clássicas.
Rematando todo o conjunto, ergue-se a imagem em vulto de Cristo Ressuscitado. Se muitas custódias desta tipologia e época apresentam uma cruz, crucifixo ou, por vezes, uma figura alegórica, a imagem escultórica do Ressuscitado é, possivelmente, uma das formas mais predominantes de remate. E, considerando as funções deste objeto, talvez se perceba essa lógica: não será a Ressurreição o corolário do sacrifício eucarístico?
CUSTÓDIA-CÁLICE
Portugal, séc. XVII (c. 1600-1625) – Prata dourada, vidro
A 63,5 x L 16,8 cm – MNAA, inv. 171 Our
Fotografia © DGPC/ADF, Luísa Oliveira)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
Conheça melhor a Brotéria