“O P. Manuel Antunes teve um papel influente na transição da ditadura para a democracia”

José Eduardo Franco, investigador e responsável pela comissão organizadora do centenário do P. Manuel Antunes, explica ao Ponto SJ a importância deste jesuíta na cultura portuguesa. Em novembro assinalam-se 100 anos do seu nascimento.

José Eduardo Franco, investigador e responsável pela comissão organizadora do centenário do P. Manuel Antunes, explica ao Ponto SJ a importância deste jesuíta na cultura portuguesa. Em novembro assinalam-se 100 anos do seu nascimento.

Ponto SJ – Num tempo como o atual, em que o diálogo no espaço público é tão marcado pelo ruído, pela polémica e pela superficialidade, qual é a importância de recordar uma personalidade como o Padre Manuel Antunes?

Professor José Eduardo Franco – É uma personalidade inspiradora que nos faz centrar no essencial e nos altos valores da cultura e do espírito. É um sábio do tempo longo, da necessidade de calma e do silêncio para o amadurecimento, que considera a cultura um bem de primeira necessidade. Foi aquele professor que, quando convidado, em 1957, por Vitorino Nemésio para assumir a docência da disciplina de História de Cultura Clássica, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, exclamou que precisava de pelo menos 10 anos para se preparar para essa responsabilidade. Quando ministrou, durante décadas, as suas aulas no Anfiteatro I daquela Faculdade, a mais de 15 mil alunos, brilhou pela imensidade e solidez do saber que transmitia às novas gerações, usando a sua vasta ciência sobre o mundo clássico e a civilização ocidental na longa duração, para compreender e dar a compreender o mundo seu contemporâneo e os desafios do futuro para humanidade.

Quais são as características, enquanto pensador e pedagogo, mais determinantes e definidoras do seu legado?

Ensinou-nos que a produção e a acumulação de conhecimento precisam, nos tempos vertiginosos da tecnicização do cosmos em que vivemos, de ser acompanhadas de sabedoria e banhadas por uma espiritualidade libertadora de um materialismo redutor. Ao Padre Manuel Antunes, conhecido pela sua sensatez, pelas suas apreciações equilibradas e ponderadas, muitos, jovens e velhos, políticos e escritores, pediam conselhos. Teve um papel discreto, mas influente, na procura de caminhos acertados na fase complexa de transição da Ditadura para a Democracia que emergiu da Revolução dos Cravos, em abril de 1974.

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O P. Manuel Antunes foi condecorado pelo Presidente da república General Ramalho Eanes

Era um estudioso e um pensador de “banda larga”. Tanto dominava os autores clássicos, Homero e Platão, como conhecia bem e dialogava com os mais contemporâneos e, especialmente, com os autores que se situavam na fronteira crítica da cultura cristã: desde Marx a Sartre.  Como pedagogo impressionava pela profundidade e abrangência do seu conhecimento, mas também pela capacidade de compreender os grandes dinamismos da história e da cultura. O seu saber não era um saber morto, mas um saber vivo e inspirador para as novas gerações, que dele recebiam chaves de leitura para, situando-se no tempo e na história, recriarem o presente.

Ensinou-nos que a produção e a acumulação de conhecimento precisam, nos tempos vertiginosos da tecnicização do cosmos em que vivemos, de ser acompanhadas de sabedoria e banhadas por uma espiritualidade libertadora de um materialismo redutor.

José Eduardo Franco

Por estas e outras razões, a biografia que escrevemos sobre o Padre Manuel Antunes demonstra como ele merece o título de pedagogo da democracia e da liberdade, de que é emblemático o livro que nos legou, intitulado Repensar Portugal. Este livrinho deveria ser um manual de leitura obrigatória para os políticos, como aconselhava o seu colega de Faculdade, o Professor Lindley Cintra.

De que forma o seu pensamento se mantém atual e capaz de mobilizar e inspirar o tempo presente?

O Padre Manuel Antunes tinha um pensamento prospetivo e foi um grande intérprete do homem e das sociedades contemporâneas, tendo antecipado derivas e tendências que se vieram a confirmar como válidas. Ainda hoje podem ler-se com proveito, porque mantêm grande atualidade, os seus textos sobre educação, sobre a antropologia do homem e da mulher hodiernos, sobre o perfil da juventude da sociedade de informação e do divertimento; como também são ainda espantosamente surpreendentes, pela sua capacidade de antevisão, os textos que escreveu, nos anos 60 e 70, sobre a China, a Rússia, o Médio Oriente, o Japão, o Brasil, a Comunidade Económica Europeia, a América e sobre os mais diversos países e centros nevrálgicos do mundo, no quadro das análises que escreveu na revista Brotéria sobre política e relações internacionais.

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O P. Manuel Antunes no terraço da comunidade da revista Brotéria na qual escreveu ao longo de 40 anos.

Fundamentalmente, o Padre Manuel Antunes era um intelectual humanista e preocupado com a construção de uma ciência e uma cultura de rosto humano. Sendo professor e estudioso de tudo o que ao ser humano dizia respeito, implicou-se na vida das pessoas e participou nas dinâmicas políticas, sociais e religiosas do seu tempo. Era um intelectual comprometido e um mestre do diálogo com todos. Legou-nos esse exemplo extraordinário de acolhimento e de abertura à diferença, procurando tudo integrar e compreender pelo olhar da fé e da razão. Tornou-se, por isso, um conciliador de mundos: do mundo clássico com o mundo moderno, da fé com a razão, da ciência com a sabedoria, sem falar do seu empenho em aproximar e compreender personalidades desavindas e frentes de pensamento incompatíveis. Deste modo, ainda hoje o Padre Manuel Antunes é impressionantemente admirado por pessoas de todos os quadrantes políticos e ideológicos. Um caso absolutamente raro na história da cultura portuguesa. Um padre, um jesuíta, um professor da segunda metade do século XX considerado, desde a esquerda à direita, por crentes e não crentes, um modelo de sábio humanista, que inspirou caminhos melhores para a vida em democracia.

Fundamentalmente, o Padre Manuel Antunes era um intelectual humanista e preocupado com a construção de uma ciência e uma cultura de rosto humano. Sendo professor e estudioso de tudo o que ao ser humano dizia respeito, implicou-se na vida das pessoas e participou nas dinâmicas políticas, sociais e religiosas do seu tempo

José Eduardo Franco

Que iniciativas destacaria neste ano de comemorações?

Neste ano de comemoração do Centenário do Nascimento do Padre Manuel Antunes, estamos a promover um conjunto de iniciativas para dar a conhecer esta figura para além dos muros da universidade e, especialmente, para a tornar conhecida junto dos mais jovens e também no plano internacional. Está já pronta e a circular pelo país (em universidades, escolas, bibliotecas, entre outros espaços) uma lindíssima exposição itinerante sobre a sua vida, obra e sobre o seu pensamento. Estão a ser preparadas obras seletas com os seus textos mais importantes, para serem traduzidas e publicadas em várias línguas. Estamos a planear a elaboração de uma biografia ilustrada sobre esta figura para ser publicada nas edições dos Correios de Portugal, assim como uma biografia infanto-juvenil, além de outras iniciativas de divulgação que passam por programas de rádio e por maratonas de leitura.

 

Estas e outras realizações terão como evento culminante o congresso internacional Padre Manuel Antunes – 100 anos para Repensar Portugal, a Europa e a Globalização, que se realizará na Assembleia da República, na Fundação Calouste Gulbenkian e no Centro Cultural da Sertã

José Eduardo Franco

Estas e outras realizações terão como evento culminante o congresso internacional Padre Manuel Antunes – 100 anos para Repensar Portugal, a Europa e a Globalização, que se realizará na Assembleia da República, na Fundação Calouste Gulbenkian e no Centro Cultural da Sertã. Este grande congresso será creditado como ação de formação para docentes e contará com a participação de grandes especialistas das mais diversas áreas de saber, os quais, tendo como pano de fundo o pensamento antunesiano, nos ajudarão a refletir sobre os grandes temas e desafios do mundo global em que vivemos.

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.