O fim de 2021 traz memórias do seu início. É sempre assim com qualquer balanço do ano, inevitável nos últimos dias de dezembro, mas o sobressalto coletivo provocado pela pandemia dá um sentido mais concreto a estas memórias: em janeiro, tal como agora, víamos a propagação do vírus acelerar para números recorde, capazes de fazer empalidecer os «picos» pandémicos anteriores. Ultrapassado o novo pico — os 16 mil infetados num só dia no fim de janeiro, número cravado a fundo na nossa memória partilhada —, o país respirou de alívio. O pináculo da pandemia passará, acreditámos, mesmo quando nos avisaram, logo em fevereiro, de que não deveríamos descartar a possibilidade de uma quarta vaga. Não poderiam tirar-nos mais um ano de vida; era tempo de voltar à normalidade.
O ano foi, efetivamente, de regressos. Com a segurança da vacina, voltámos ao trabalho presencial, às salas de espetáculo, aos restaurantes, às igrejas.
No outono, porém, demo-nos conta de que, provavelmente, os pessimistas tinham razão quando nos disseram que a pandemia estava longe de ultrapassada. O tempo frio trouxe uma inelutável subida do número de contágios — como sempre acontece com os vírus respiratórios que já conhecemos — e a já célebre variante «Ómicron» aprofundou o problema com a incerteza. O recorde de janeiro foi ultrapassado e ainda não foi em 2021 que voltámos a passar um Natal sem preocupações à mesa. Voltaram as memórias do início do ano. Mas, apesar do número de contágios semelhante, podemos ter uma certeza: estamos longe do cenário trágico do último inverno. A um mesmo número de casos positivos correspondem agora, em média, um décimo dos óbitos e seis vezes menos internamentos. Tudo isto perante uma variante mais contagiosa. A diferença face ao ano passado é evidente: a esmagadora maioria dos portugueses estão vacinados — e o reforço está em curso.
A vacinação foi, provavelmente, a melhor notícia que 2021 nos trouxe. O consenso científico diz-nos que o coronavírus se tornará, no futuro, apenas mais um de muitos vírus a circular entre nós. Aos olhos de um otimista como eu, 2021 foi um passo de gigante nessa direção: o vírus continua aí, mas mais controlado e menos mortífero. Estamos mais perto do fim. Mais cedo do que tarde, esta evidência terá de se refletir num regresso efetivo à vida habitual e num convívio normalizado com mais um vírus de que não estaremos livres. Como sempre acontece, também esta crise se traduz em novas oportunidades. Aponto para uma em concreto: a urgência de cuidarmos da nossa saúde mental, agora que todos sabemos quão devastadora pode ser a sua falta.
Todavia, se é verdade que 2021 nos mostrou que estamos a caminhar a passos largos para o regresso à normalidade pós-pandémica, é igualmente verdade que os acontecimentos dos últimos meses deixaram a nu um dos nossos piores defeitos, capaz de levar a humanidade à ruína: a ausência de solidariedade entre as nações do mundo.
Todavia, se é verdade que 2021 nos mostrou que estamos a caminhar a passos largos para o regresso à normalidade pós-pandémica, é igualmente verdade que os acontecimentos dos últimos meses deixaram a nu um dos nossos piores defeitos, capaz de levar a humanidade à ruína: a ausência de solidariedade entre as nações do mundo. Em fevereiro, o secretário-geral da ONU, o português António Guterres, lançara o alerta num texto publicado no jornal inglês The Guardian: «O mais recente ultraje moral é o falhanço em assegurar a equidade nos esforços de vacinação. Somente 10 países já administraram mais de 75% de todas as vacinas contra a Covid-19. Enquanto isso, mais de 130 países ainda não receberam uma única dose.»
Como o Papa Francisco — que tem dito e repetido que «estamos todos neste barco» e que «ninguém se salva sozinho» —, também Guterres procurou, naquele apelo, lembrar aos países mais ricos que a falta de solidariedade com os mais pobres lhes poderia sair cara mais tarde. «Se permitirmos que o vírus se espalhe como um incêndio descontrolado em partes do Sul Global, vai sofrer mutações uma e outra vez. As novas variantes podem tornar-se mais transmissíveis, mais mortíferas e, potencialmente, ameaçar a eficácia das vacinas e dos diagnósticos atuais. Isto pode prolongar significativamente a pandemia, permitindo que o vírus regresse aos países do norte e atrase a recuperação económica do mundo.»
Dito e feito. Nos primeiros dias de novembro, cientistas sul-africanos detetaram no país os primeiros casos da variante «Ómicron» — uma mutação que tem colocado à prova a eficácia das vacinas e dos sistemas de saúde, por ser muito mais transmissível. Os países do sul de África, com taxas de vacinação muito pequenas (no final de dezembro, a África do Sul continuava a ter apenas 26% da sua população totalmente vacinada contra o coronavírus), formaram o caldo perfeito para o desenvolvimento de uma nova variante que, em poucas semanas, obrigou os países do hemisfério norte a adotar, de novo, medidas restritivas, com os inevitáveis impactos económicos reservados para o novo ano que se aproxima. A profecia de Guterres cumpriu-se em poucos meses — e talvez tivesse sido menos dramática se o mundo tivesse percebido mais cedo que, evidentemente, ninguém se salva sozinho.
Esta parece ser, porém, uma lição difícil de aprender. No verão, o mundo testemunhou em direto a queda do povo afegão às mãos dos talibãs, vinte anos depois da invasão norte-americana. A retirada, operada em poucas semanas, levantou graves dilemas morais quanto à responsabilidade das forças ocidentais relativamente ao povo afegão e, especialmente, àqueles afegãos que, por terem ajudado o Ocidente durante duas décadas, estavam, com as suas famílias, em especial perigo. Sabemos agora que centenas de aliados afegãos foram mesmo deixados para trás e que há histórias de contornos duvidosos ainda por esclarecer. Já no final do ano, o aprofundamento das tensões na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia deixa no ar a ameaça de uma guerra iminente entre Moscovo e o Ocidente, com potencial para originar milhões de novos refugiados. Uma crise que se poderá sobrepor à já dramática crise de refugiados que o mundo enfrenta atualmente — e que teve em novembro deste ano um dos seus episódios mais trágicos nas águas do Canal da Mancha.
Já no final do ano, o aprofundamento das tensões na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia deixa no ar a ameaça de uma guerra iminente entre Moscovo e o Ocidente, com potencial para originar milhões de novos refugiados.
Sobre a crise dos refugiados, o Papa Francisco usou em maio deste ano justamente a mesma expressão que usara, um ano antes, para a pandemia: «Estamos todos no mesmo barco.» Na mensagem que deixou ao mundo a pretexto do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, o Papa pediu aos católicos que fossem às «periferias existenciais para cuidar de quem está ferido e procurar quem anda extraviado». Contudo, para uma parte importante da Igreja Católica, 2021 foi também o ano de olhar para dentro em busca dos seus próprios feridos. No que respeita ao drama dos abusos sexuais de menores, a mais profunda crise da história contemporânea da Igreja, 2021 foi um ano de avanços significativos. Em março, um relatório divulgado na Alemanha mostrou a dimensão do problema na diocese de Colónia: pelo menos 314 vítimas em 43 anos, casos que ficaram por denunciar devido ao sistema de encobrimento montado e operado pela hierarquia eclesiástica durante décadas. O maior abalo estava reservado para outubro, com a publicação das conclusões de uma investigação semelhante em França. Naquele país, as estimativas foram aterradoras: 216 mil vítimas terão sofrido abusos às mãos de clérigos e religiosos entre 1950 e 2020.
Finalmente, em 2021, o drama internacional motivou a ação em Portugal. Depois da divulgação do relatório francês, os apelos para que também os bispos portugueses encomendassem uma investigação independente e meticulosa ao passado da Igreja no nosso país tornaram-se ensurdecedores. Em novembro, a decisão esperada por parte da Conferência Episcopal Portuguesa: uma comissão independente para coordenar, a nível nacional, os esforços de combate aos abusos levados a cabo pelas 21 comissões diocesanas de proteção de menores — e, essencialmente, para levar a cabo um estudo de apuramento da verdade histórica desta tragédia em Portugal. É o próprio Vaticano que o tem dito e repetido, sobretudo pela voz do padre jesuíta Hans Zollner, uma autoridade no assunto: «Onde se diz “aqui não há abusos”, significa que ali não se fala [deles]. Há em todos os lugares do mundo.» Em Portugal, foram anos a dizer que «aqui não há abusos». Este foi o ano em que se começou o longo e penoso caminho que permitirá conhecer uma realidade da Igreja portuguesa que ainda desconhecemos largamente.
A tarefa foi confiada a Pedro Strecht, um pedopsiquiatra com cartas dadas no estudo do problema e no combate aos abusos de menores. Para já, o modo de atuação desta comissão permanece, em grande medida, desconhecido. Estão prometidos esclarecimentos pormenorizados para janeiro e um relatório final para dezembro, o que permite antever que 2022 será o ano em que, possivelmente, mudaremos o modo como olhamos para a história contemporânea do catolicismo português. Para já, tanto Pedro Strecht como o presidente da CEP, D. José Ornelas, garantiram que a comissão será verdadeiramente independente. Strecht foi claro numa conferência de imprensa em dezembro: «Se, porventura, eu algum dia me sentir coagido (…), serei o primeiro a dizer “muito obrigado, mas paro por aqui”.»
É o próprio Vaticano que o tem dito e repetido, sobretudo pela voz do padre jesuíta Hans Zollner, uma autoridade no assunto: «Onde se diz “aqui não há abusos”, significa que ali não se fala [deles]. Há em todos os lugares do mundo.» Em Portugal, foram anos a dizer que «aqui não há abusos».
A crise dos abusos de menores na Igreja Católica está longe, muito longe, de ser um problema recente. Na verdade, podemos encontrá-lo ao longo dos dois mil anos da história do Cristianismo, tendo-se intensificado no século XX e, particularmente, nos últimos quarenta anos — como procurei retratar num livro publicado em outubro deste ano (Roma, temos um problema, pela Tinta-da-china). É, por isso, de especial importância que a Igreja Católica colabore sem reservas com esta comissão independente na busca da verdade histórica. E isso significa não ter medo de abrir as portas dos seus arquivos, como aconteceu em vários países onde ocorreram investigações semelhantes. Sabemos que, em Portugal, nem todos os bispos pensam da mesma forma sobre a necessidade e a oportunidade de uma investigação ao passado, nem sobre o modo como uma investigação dessas deve ser feita. E sabemos, também, que são os bispos que têm a jurisdição dos arquivos das suas dioceses. É imperioso que todos, sem exceção, colaborem no processo. Dessa cooperação dependerá o sucesso do trabalho da comissão que agora entra em funções.
Para a Igreja Católica, 2021 foi um ano de confronto com os fantasmas internos também no que toca às finanças milionárias do Vaticano. Um esquema de contornos duvidosos envolvendo a compra de um prédio em Londres com dinheiro destinado à caridade precipitou um julgamento de alto nível: os tribunais do Vaticano estão a julgar por suspeitas de corrupção vários dos seus homens mais poderosos, incluindo o cardeal Angelo Becciu, ex-número dois do Ministério das Finanças do Vaticano. O caso abalou a credibilidade institucional da Igreja em 2021 e deverá conhecer novos desenvolvimentos em 2022 — que serão fundamentais para perceber até que ponto o Papa Francisco está, efetivamente, a ser capaz de curar o Vaticano dos seus vícios seculares. Mas 2021 foi também o ano em que o Papa Francisco apontou a mira a outro dos escolhos que identificou na Igreja contemporânea: o tradicionalismo ultra-radical. Ao publicar novas normas que restringem fortemente o uso da missa antiga, Francisco acertou em cheio numa prática que foi, nas suas palavras, instrumentalizada por grupos que recusam os avanços do Concílio Vaticano II, rejeitam que a Igreja acompanhe o ritmo da modernização da sociedade e minam a unidade dos cristãos, um dos desígnios centrais da natureza da própria Igreja Católica. A preferência de Francisco pela contemporaneidade, pelos pobres e marginalizados e pelo pragmatismo da ação eclesial no mundo de hoje já lhe valeu muitos inimigos na ala tradicionalista (veja-se, por exemplo, o caso das dubia lançadas na sequência da Amoris Laetitia). Esta proibição, num ano em que a abertura às uniões homossexuais pôs a Igreja a debater-se com a possibilidade de um cisma contemporâneo, pode ser a machadada final numa Igreja cada vez mais dividida.
Ao publicar novas normas que restringem fortemente o uso da missa antiga, Francisco acertou em cheio numa prática que foi, nas suas palavras, instrumentalizada por grupos que recusam os avanços do Concílio Vaticano II, rejeitam que a Igreja acompanhe o ritmo da modernização da sociedade e minam a unidade dos cristãos, um dos desígnios centrais da natureza da própria Igreja Católica.
Em Portugal, o ano terminou com uma crise política. O chumbo do Orçamento do Estado levou à queda do Governo e ao agendamento de eleições legislativas para o final de janeiro. O país vai, por isso, começar o ano novo em clima de debate político-partidário acirrado — o que coloca, como sempre, um desafio à Igreja Católica em particular e às confissões religiosas no geral: afinal, o que devem os líderes religiosos dizer aos seus fiéis sobre as eleições? Em novembro, falando sobre o período eleitoral que se aproxima, D. José Ornelas alertou para a necessidade de todos os agentes políticos tomarem «decisões certas que tenham por base única e exclusivamente o bem comum». Todavia, nessa mesma conferência de imprensa, pronunciando-se sobre a aprovação da lei da eutanásia nos últimos dias de um Parlamento com as horas contadas, o presidente da CEP não resistiu a trazer para o centro do posicionamento político da Igreja a bandeira de sempre: a defesa da vida (que, pragmaticamente, se tem traduzido essencialmente em tomadas de posição pública em assuntos como o aborto ou a eutanásia).
A insistência nestes tópicos (a que se somam outros igualmente fraturantes, como a luta contra as políticas de igualdade de género) sempre que estão em causa discussões políticas já valeu à Igreja Católica situações de embaraço público evitáveis — por exemplo, quando em 2019, resumindo os programas eleitorais a seis destas bandeiras ideológicas, acabou a apelar indiretamente aos seus fiéis para que votassem no Chega ou no CDS. Veremos como a Igreja Católica — uma organização à qual vários milhões de portugueses recorrem em busca de orientação espiritual — aproveitará a oportunidade trazida por este novo ano para discutir as suas ideias políticas além das bandeiras do costume.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.