Aquela voz misturava espanto, desilusão e talvez um pouco de mágoa. Uma mágoa tenuemente enraivecida. Chegara de um desses locais que a guerra traz aos telejornais e aos vídeos viralmente partilhados nas redes socais e desabafava: “como é possível que as notícias que aqui se difundem fiquem tão longe da realidade.” E acrescentava: “querem tudo a preto e branco, reduzido às velhas histórias de índios e cobóis.”
Muitas notícias têm o selo de garantia de credíveis agências internacionais, são insuspeitas de serem “fake“. E, no entanto, estão prisioneiras da lógica da pressa, da avidez da difusão a que corresponde a avidez apressada do consumo.
Cada um de nós, sentado à frente do ecrã do seu computador, deslizando o dedo na superfície do telemóvel ou vendo TV, não pode, por si só, mudar a qualidade do jornalismo.
Mas as notícias tanto podem ser falseadas por quem as escreve, como por quem as lê. Não se trata de desresponsabilizar os media. Trata-se de entender que o consumo e a partilha acrítica de informação são pasto fértil para o fogo da deturpação e da mentira.
Como podemos exercer de um modo mais exigente a leitura das notícias tornando-a mais verdadeira?
1. Distinguir as fontes e situar os factos
Há um cada vez maior número de sites a difundir informação de notícias e muitas delas trazem a nota do escândalo ou da tragédia. Zangas entre famosos, mortes ocultadas, crimes de corrupção por descobrir. Ora, se uma notícia é dada por um site relativamente desconhecido, talvez se possa fazer um breve “zapping” por sites credíveis verificando se há vestígio da dita informação. Outra pequenina coisa que pode ajudar é verificar a data das notícias. Por vezes, são difundidas como atuais notícias com quatro ou cinco anos…
Devido às suas responsabilidades, algumas personalidades públicas tornam-se, em dados momentos, foco de um maior escrutínio por parte dos media. Isso é bom para a democracia. Mas há que estar atento. A pressa de fechar edições e se adiantar à concorrência pode levar a tropeções. Lembro-me de notícias sobre o doutoramento do ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, na altura da crise dos contratos de associação. Uma leitura atenta da notícia levava a perceber que o que de menos certo pudesse ter existido, já tinha há muito sido corrigido pelo ministro. Por isso, a notícia foi extemporânea. Utilizá-la na contestação das escolas com contrato de associação ao Governo não teria sido apenas um tiro no pé, mas fomentar um jornalismo apressado que se alimenta à custa de emoções primárias e não discernidas.
As notícias tanto podem ser falseadas por quem as escreve, como por quem as lê. Não se trata de desresponsabilizar os media. Trata-se de entender que o consumo e a partilha acrítica de informação são pasto fértil para o fogo da deturpação e da mentira.
2. A verdade existe…
O prefixo pós é amplamente utilizado: pós-modernidade, pós-humanidade, pós-verdade. Associado a ele aparece a ideia de superação, ultrapassagem de limites, libertação de ataduras. Há nestes movimentos boa matéria de reflexão. A verdade e o modo como esta é discernida, através de uma consciência culturalmente situada, não admite conclusões quimicamente puras. Mas deixar que a verdade se transforme em mera convenção cultural, simples deliberação de maiorias ou de grupos de pressão, é matar a possibilidade de que haja critérios que permitam distinguir o que existe daquilo que não existe, o bem do mal.
A objetividade total no relato de um facto é impossível, podemos apenas exigir honestidade. Mas, da subjetividade do relato não se pode deduzir a morte do facto. Acreditar que a verdade existe, recusar o subjetivismo total é um bom antídoto para não alinhar em leituras falseadoras da realidade.
3. … e o cinzento também
A verdade existe, mas nós não a podemos captar de um modo definitivo. Uma das nossas grandes tentações é a simplificação, reduzindo a complexidade da vida a etiquetas comodistas: bons e maus, progressistas e conservadores, santos e pecadores. Esta simplificação sossega o espírito, mata o cinzento, mas adormece a consciência. Exime-nos de buscar com paciência a causa das coisas. Impede-nos de aceitar os meios-tons da vida. Compreender o mundo dá trabalho.
É bom lembrar que o Facebook e o Google vão registando os nossos hábitos, apreendendo os nossos gostos e preconceitos e que, por isso, acabam por nos dar muito daquilo que queremos ver. É, por isso, necessário uma saudável auto-suspeita que nos leve a perguntar: não estou apenas a ver aquilo que me querem mostrar, a deixar que me envolvam na minha bolha preguiçosa?
4. Por detrás das notícias, há pessoas
Parte da nossa ligação ao mundo faz-se através de redes desertas de rostos reais, em que o olhar se cansa, mas em que raramente se cruza com outro olhar. Por isso, quando partilhamos uma notícia embaraçosa, quando nos envolvemos em discussões e juízos em caixas de comentários, ou quando, no meio de tudo isto, alimentamos correntes de maledicência e difamação, esquecemo-nos de que há pessoas de carne e osso a sofrer as consequências.
Na Mensagem do Papa para o 52º Dia das Comunicações Sociais, recorda-se que a Verdade é bem mais do que uma realidade conceptual. Implica uma relação autêntica de confiança com quem nos pode segurar. Se as notícias que lemos e escolhemos difundir transmitem uma visão dualista do mundo, dividindo-o entre de bons e maus, alimentam a ânsia e a desconfiança.
A simplificação sossega o espírito, mata o cinzento, mas adormece a consciência. Exime-nos de buscar com paciência a causa das coisas. Impede-nos de aceitar os meios-tons da vida. Compreender o mundo dá trabalho.
5. A verdade do que não se vê
Finalmente, se queremos aprender a ler o mundo de um modo mais autêntico e verdadeiro, precisamos de recordar que há muitas realidades humanas que escapam ao nosso olhar e que estão fora do radar das nossas inquietações e indignações.
Saber que há mais mundo para além das notícias e das redes socais, procurar conhecer esse mundo é também o modo de curar uma distração que nos pode tornar cegos
6. Sentir. Refletir. Agir.
Há uns tempos, conversava com um grupo de jovens sobre o modo como podemos aprender a ler os nossos sentimentos. Falava-lhes de três passos possíveis para viver de um modo discernido.
Primeiro há que sentir e dar nome ao sentimento, depois refletir sobre a sua origem, onde nos pode levar e, finalmente, agir. Comentava também que muitas vezes saltamos do primeiro ao último passo de um modo demasiado imediato. E alguém me dizia: “O problema é que às vezes nem chegamos a dar o primeiro passo, agimos logo sem saber o que sentimos e sem refletir sobre isso..“
No modo como lemos e fazemos circular as notícias, a avidez do consumo e da partilha também nos pode levar a dar este “salto mortal”. Agimos sem saber o que sentimos, sem refletir e esse pode ser o caminho mais rápido para falsear as notícias que lemos, vemos, ouvimos e partilhamos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.