“O desenho procura encontrar o rasto de Deus”

Diário Gráfico é o livro do P. Nuno Branco, sj, que será lançado amanhã, às 18.30, na Livraria Ferin, em Lisboa. Ao Ponto SJ, sublinha que a arte pode dar voz a um grito que vem de dentro e que não descansa enquanto não encontra forma.

Diário Gráfico é o livro do P. Nuno Branco, sj, que será lançado amanhã, às 18.30, na Livraria Ferin, em Lisboa. Ao Ponto SJ, sublinha que a arte pode dar voz a um grito que vem de dentro e que não descansa enquanto não encontra forma.

1. O que é um diário gráfico? Habitualmente, que uso faz dele?

Recordo-me que em matéria de desenho, no decorrer do curso de Arquitetura, fui marcado por dois professores das Belas Artes: Fernando Conduto da área da Escultura e a Ana Leonor Rodrigues de Pintura. Naquela sala de aula misturavam esta variedade plástica que teve forçosamente os seus efeitos no modo como cada um de nós se aproximou do desenho. Destas aulas recordo três dimensões que perduram e vinculam a natureza e o uso de um diário gráfico. Em primeiro lugar, a disciplina. Imprimiram em nós o hábito e o gosto pelo desenho. Encarar o desenho como procura delicada e como olhar demorado e pausado. Embora o artista apareça associado a uma certa indisciplina ou desgoverno, o diário gráfico – como o nome indica a sua periodicidade – obrigava o aluno a ganhar hábitos de trabalho e sobretudo bons hábitos de disciplina em receber os seus dias como matéria de observação e desenho. Mesmo que isso gerasse eventual luta ou desgosto.

Em segundo, o desenho e o diário gráfico apareciam como ateliers, oficinas ou estúdios de bolso, portáteis. Através de um caderno de pequenas dimensões e de fácil transporte, iniciávamos um caminho desempoeirado de sermos testemunhas de lugares e pessoas com quem nos cruzávamos, mas sobretudo o lugar onde se regista o pensamento, as ideias e onde se forma e executa a criatividade. E finalmente, o último ponto: a liberdade do traço. Uma vez que o diário gráfico não tem a pretensão de ser publicado, é pessoal e particular, significa que não estamos a desenhar para ninguém. Não há, por isso, a pretensão da perfeição ou de um desenho imaculado, mas ganharmos gosto pelos processos e por uma verdade e honestidade, sem máscaras, espelhada no desenho.

Há aqui também uma dimensão de inutilidade do próprio diário gráfico, mas isso daria outra conversa.

O desenho é um gosto, um descanso e uma luta.

2. Como é que a experiência do desenho tem aprofundado a sua relação com Deus? O traço ajuda a rezar?

Embora tivesse dito que o diário gráfico imprime uma regularidade significativa, por agora e no meu caso, o desenho tem aparecido de maneira mais ocasional. O desenho tem sido para mim uma espécie de sentinela ou de candeia que procura, por entre os afazeres da vida, encontrar a presença ou o rasto de Deus.

Tenho para mim que a arte é chamada a esta humildade e quando o é, aprofunda a minha relação com Deus.

Curiosamente, o desenho ajuda a reconciliar-me com esta impossibilidade de ver Deus. Como padre e jesuíta, companheiro de Jesus, pergunto-me por Deus. Pela sua fisionomia, pelas suas feições, pelo seu lugar onde Se instala e habita. Pergunto-me. E o desenho se for lamparina sossega e abranda o olhar. Amplifica a vontade de um encontro ao mesmo tempo que aumenta uma sede e uma procura.

Tenho andado por aqui. O desenho é um gosto, um descanso e uma luta. Luta entre a posse – esta pretensão de tocar no mistério querendo precipitar já o Reino dos Céus – e a humildade, o desejo de parar, apreciar e contemplar e, em ultima instância, ficar em silêncio, porque mais não pode nem deve ser dito.

3. Tem acompanhado algumas pessoas que fazem também a experiência dos diários gráficos. O que buscam?

Às vezes, em matéria de motivações, não nos é imediato perceber por onde as pessoas andam. O caminho pode ser iniciado com uma intenção e motivação que vem, com o tempo, a transformar-se. Por isso, diria que a busca inicial pode ser muito variada e até é desejável que o seja: desde o gosto e o apreço pelo desenho, passando pela vontade de aperfeiçoar uma técnica, de conhecer pessoas do âmbito da expressão plástica até, e esta tem sido sem dúvida aquela que predomina, uma procura de maior unidade entre a experiência religiosa com a expressão plástica, procuram o lugar que esta pode ocupar naquela.

Ainda assim, e com tudo isto, diria que as pessoas que fazem uma experiência espiritual de diários gráficos procuram, sobretudo, o silêncio. Procuram devolver à vida aquilo de que ela se sente privada: a arrumação, o sentido, a clareza, os hábitos de oração.

De tudo isto, e pelo que me tenho apercebido entre as mais variadas motivações, andamos todos à procura do mesmo expressado de maneira diferente. Andamos à procura do Senhor.

Penso também que existe uma outra procura e necessidade: a da linguagem. Não é imediato que uma pessoa saiba falar da sua experiência de vida e muito menos da sua experiência de fé. Falta-nos a palavra justa e adequada, a consciência afinada de uma moção interior, a distinção depurada de acontecimentos sucessivos lidos e interpretados à luz da fé. Parece que falta gramática e vocabulário. Parece que precisaríamos de reinventar novas palavras.

Talvez por isso, as pessoas aguardam que a arte, rompendo às vezes com a gramática ou as construções frásicas, possa dar voz a um grito que vem de dentro e que não descansa enquanto não encontrar forma.

As pessoas aguardam que a arte, rompendo às vezes com a gramática ou as construções frásicas, possa dar voz a um grito que vem de dentro e que não descansa enquanto não encontrar forma.

4. Já houve até Exercícios em Diários Gráficos. Como funcionam?

Num documento recente da Companhia de Jesus, confirmado pelo Papa Francisco, encontramos as chamadas Preferências Apostólicas Universais que indicam um modo de proceder e de estar num tempo e lugar concreto. Como base e principio originário, surge uma necessidade vital que sem ela não existe força apostólica: os Exercícios Espirituais e o discernimento.

“Oferecendo os Exercícios Espirituais em todas as modalidades possíveis, abrindo a muitas pessoas”, surge esta proposta que confirmada pela Companhia de Jesus e pelos frutos gerados, assinala um desejo sincero e profundo de procurar e mostrar o caminho para Deus. Assente no “modo e ordem” deixado por Santo Inácio, estes Exercícios feitos ao longo do ano recuperam aquilo que é fundamental na experiência espiritual, o de favorecer um encontro com o Senhor que transforme e converta efetivamente a vida de cada um. A saber: as propostas de oração assentes no caminho pedagógico imposto pelos Exercícios Espirituais, o exame diário de consciência e o acompanhamento espiritual a cada um.

Penso que o diário gráfico não é um pretexto, mas o suporte ou a testemunha ocular de um processo de conversão e de transformação. Nestes exercícios, o diário gráfico tem um formato invulgar: o harmónio. Permite precisamente ser isto: testemunha de um caminho de conversão individual e de seguimento do Senhor refletido (com maior ou menor engenho) na imagem, na palavra, na expressão plástica, naquilo que pode ser dito e naquilo que ainda fica por dizer.

O diário gráfico permite ser testemunha de um caminho de conversão individual e de seguimento do Senhor refletido (com maior ou menor engenho) na imagem, na palavra, na expressão plástica, naquilo que pode ser dito e naquilo que ainda fica por dizer.

5. O que as pessoas pode esperar deste livro?

Não sei, é difícil dizê-lo. Primeiro, porque há aqui uma confidencialidade entre o leitor e o livro que eu, como autor, não me devo intrometer nem espreitar. O leitor de qualquer livro (se este for bom) acabará por assumir um determinado protagonismo, tornando-se de alguma maneira autor. Por isso, diria que as pessoas podem esperar isto: tornarem-se autoras.

Até porque vão encontrar um livro incompleto, inacabado e impreciso na sua linguagem. Talvez encontrem um jesuíta a ensaiar uma voz ou a balbuciar uma linha nesta procura, na qual nos tornamos todos contemporâneos e conterrâneos: uma sede de Deus. Numa presença inédita por lugares invulgares, Deus despertará esta esperança de que cada um se atreva a espantar-se e a ser boa testemunha (literária, gráfica ou silenciosa) de uma graça ocorrida por entre o espaço da vida diária.

Também me atreveria a dizer que não esperem nada. Que não esperem muito. Que aguardem sim por este desejo: o leitor é chamado a ser autor.

Título: Diário Gráfico – a experiência de Deus na vida diária

Autor: Nuno Branco, sj

Editora: Frente e verso

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.