Apaixonado desde cedo pela filosofia e pelas questões políticas, o P. João J. Vila-Chã fez todo o seu percurso como jesuíta ligado ao ensino e à reflexão nestas áreas. Depois de ter passado por Braga, Alemanha e Boston, atualmente, e há cerca de dez anos, é professor de Filosofia Social e Política na Universidade Pontifícia Gregoriana, em Roma. No ano passado foi distinguido com o Karl-Otto Apel International Prize for Philosophy, sendo o primeiro português a receber este prémio.
Como tem sido o seu percurso como jesuíta e de onde vem o interesse pelas questões políticas?
Entrei na Companhia de Jesus, em outubro de 1980, estava a meio dos meus estudos universitários na Faculdade de Filosofia. Foi um processo de discernimento e de radicalidade, de um certo salto no escuro. Neste processo foi muito importante uma conferência que o Padre Pedro Arrupe, na altura Superior Geral dos jesuítas, fez na Faculdade de Filosofia de Braga sobre a vida intelectual da Companhia de Jesus, corria o mês de fevereiro de 1980. Era estudante e tinha proximidade com alguns jesuítas e sabia que a vocação era um problema muito sério, por resolver, na minha vida. O que senti ao ouvi-lo nunca tinha sentido antes, uma série de respostas em catadupa, um processo em que cada palavra que saía da boca do Padre Arrupe me tocava e me fazia explodir o coração, tirando-me escamas, repondo na minha vida um muito particular sentido de Esperança. Naquele anfiteatro o que sentia era uma Voz que me dizia: mas isto é o que eu também quero! E depois, no final, estando ele à porta por onde todos tínhamos de passar e saudava cada uma das pessoas que o tinham escutado, chegando a minha vez, o seu aperto de mão, sem dizer palavra, fez-me sentir, literalmente, de todo radiografado. Para mim, um pequeno-grande milagre; de facto, não é por acaso que ainda hoje recordo a temperatura e o exato movimento da mão do Padre Pedro Arrupe!
Eram termos conturbados esses…
Estávamos no pós 25 de abril, havia uma grande confusão política, social e académica. Eu tinha ido para Filosofia aparentemente em fuga à Economia ou ao Direito pois as minhas questões eram essencialmente filosóficas, embora com uma forte componente social e política. Mais do que filosóficos, os meus problemas eram existenciais. Era assim desde os últimos dois anos do Liceu. Os meus colegas, uns mais amigos outros apenas menos adversários, eram tanto da direita como da esquerda, e eu sentia-me algo perdido no meio de tudo aquilo sem saber muito bem que rumo seria de verdade o meu.
Depois do noviciado, acabei a formação de filosofia e em 1985 o Provincial de então deu-me a missão de ensinar na Faculdade de Filosofia. Nesses dois anos, insisti no que mais me apaixonava que era a Filosofia Contemporânea, e em particular aquelas correntes de pensamento em que a componente política e social assumia particular importância. Depois fui para a Alemanha estudar Teologia, encontrando-me em pleno coração do que achava ser o centro da Europa. Foi aí que vivi a queda do muro de Berlim, ou seja, a extraordinária série de eventos que, a partir de novembro de 1989, haveria de culminar na desintegração da União Soviética e na reunificação da Alemanha. Recordo-me bem de como em meados de outubro daquele ano, numa conversa com estudantes alemães sobre a situação do país e da Europa todos, aparentemente, estávamos de acordo de que não seria no nosso tempo que veríamos o fim do comunismo e a rotura daquela violenta «cortina de ferro» que, desde o fim da segunda guerra mundial, tão dramaticamente dividia a nossa Europa.
Depois de ser ordenado padre foi para onde?
A partir do meu «Magistério», o período de formação que se segue ao noviciado e ao estudo da filosofia, sempre me senti destinado à Faculdade de Filosofia, pois foi essa a missão que me deram, e tudo procurava fazer quanto achava que me ajudasse a melhor cumprir a minha missão. Fui para os Estados Unidos da América para fazer o doutoramento, no Boston College, instituição em que permaneci durante sete anos, embora quatro dos quais também a ensinar, desde logo, para poupar os correspondentes custos à Província Portuguesa da Companhia de Jesus. Em 1998 regressei a Braga para dar continuidade à minha atividade docente, sendo que a partir de janeiro de 2000 fui chamado a assumir o cargo de diretor da Revista Portuguesa de Filosofia, onde me mantive até dezembro de 2009. A Roma cheguei em setembro de 2008, onde passei a ensinar na Pontifícia Universidade Gregoriana e agora sou titular da cadeira de Filosofia Social e Política.
E é aí que acompanha os grandes temas e a situação política internacional?
Como académico, universitário e cidadão faço um esforço por isso. Ainda no liceu, ouvi uma frase de um meu professor de religião e moral que muito me marcou, frase essa que, na realidade, era uma citação do grande teólogo protestante Karl Barth segundo a qual o cristão de hoje, para ser apóstolo, tem de ter numa mão o Evangelho e na outra o jornal diário. Ainda hoje, uma das coisas que diariamente procuro fazer é ler alguns dos principais jornais italianos, para além, naturalmente, do jornal oficial da Santa Sé. É um tempo precioso e não posso deixar de o fazer. Com o advento da era digital descobri em 2009 que o que acontecia no espaço virtual – como por exemplo as caixas de comentários de alguns jornais – tinha mais importância do que normalmente se pensa, sobretudo em meios eclesiásticos. Não que esses espaços primem pela qualidade e riqueza de ideias, mas porque são indicadores do ponto em que se encontram as pessoas do nosso tempo.
O P. João J. Vila-Chã também tem deixado aí a sua marca?
Tentei intervir de alguma forma, naturalmente nem sempre muito perfeita, num contexto de crise eclesial: quando a imprensa mundial usou e abusou das palavras de Bento XVI numa das suas viagens a África,e no avião foi chamado a responder a uma pergunta relativa ao uso do preservativo. Fiquei imensamente incomodado, e desgostoso, com o modo como a questão, à qual Bento XVI respondeu com a sua proverbial inteligência e candura, prontamente foi transformada de forma artificial num «caso» que acabou por ensombrar, pelo menos fora de África, uma viagem de alta relevância como aquela que o levou aos Camarões e a Angola. Eu sentia que a questão precisava de ser esclarecida e, por causa disso, fiz questão de descer à liça.
No fundo, complementar o trabalho que os jornalistas estavam a fazer?
Sim. Naquela altura entrei na comunidade virtual do Expresso, que tinha peso, e até alguma qualidade intelectual, embora já com esporádicas manifestações de formas grosseiras de agressividade verbal.
Ajudou a Igreja a resolver um problema de comunicação?
Eu não resolvi o problema, mas caí na conta, e acho que poderei também ter ajudado outros a perceber que o Espaço Público é de todos e, como tal, é inadmissível que as pessoas que se dizem ou consideram cristãs sejam vítimas de descriminação, objetos prediletos de alguns «bullies» de profissão. Pensava ainda que na era digital não há espaço de comunicação que mereça ser desprezado, embora uns sejam sempre melhores, ou mais adequados, do que outros. Foi um trabalho muito desgastante, pois havia um grupo de ativistas que me faziam marcação contínua, todos os dias. Mas eu pensava: estou aqui, tenho direito de expressão, e a minha voz, enquanto cidadão, tem o que é preciso para ser ouvida.Depois mudei-me para o facebook ao perceber o potencial das redes sociais. A partir daí, tudo se tornou bem mais fácil.
E hoje ainda continua?
Sim. Mas com menos tempo e energia.
https://www.facebook.com/J. VilaCha
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.