O corpo como expressão da vulnerabilidade humana

A matéria não explica a matéria. Só uma dimensão superior a justifica, pelo que o corpo do Papa Emérito é muito mais do que matéria. Ela está presente, mas não é uma matéria qualquer, sendo algo que foi chamado à existência por uma entidade

A matéria não explica a matéria. Só uma dimensão superior a justifica, pelo que o corpo do Papa Emérito é muito mais do que matéria. Ela está presente, mas não é uma matéria qualquer, sendo algo que foi chamado à existência por uma entidade

Temos bem presente a imagem do Papa Emérito Bento XVI deitado para sempre na Basílica de São Pedro. Apesar da ausência que a morte anuncia, inúmeras são as razões que levaram milhares de pessoas a visitar e orar na Basílica na presença corporal do Papa.

Nascimento e morte são momentos únicos da nossa natureza. Se no nascimento há um corpo que pelo movimento anuncia a vida, na morte há um corpo estático, expondo a sua finitude.

A morte torna clara a excecionalidade da vida. Assim, a perda que se sente com a morte é também afirmação da oportunidade que é poder viver.

Diz Edgar Morin que o normal no cosmos é não haver vida. Esta parece ser uma singularidade, que se expressa numa incrível diversidade. Com efeito, há milhões de formas de vida, desde a mais ínfima a imensas, sendo que surge em tanta variedade o ser humano.

Perante esta singularidade questionamo-nos sobre o que é o ser humano. Mais ainda, quem é o ser humano? Podemos ainda acrescentar uma outra: porquê o ser humano e não o nada?

Recorramos a São Paulo para perceber o lugar do humano na Criação através da sua antropologia ternária: somos corpo, alma e espírito (sôma, psychê e pneuma).

O ser humano constitui-se numa unidade na diversidade. Assim sendo, o corpo não é algo periférico, ocupando um lugar determinante com todos os outros elementos.

Falar acerca do corpo não é desprezar outros constituintes, na medida que é a unidade na diversidade destas dimensões que anima a natureza humana. A Teologia do Corpo de São João Paulo II reafirma o corpo como morada da alma. O corpo na sua dimensão carnal acolhe e habita o que anima – vitaliza – a existência humana.

Falar acerca do corpo não é desprezar outros constituintes, na medida que é a unidade na diversidade destas dimensões que anima a natureza humana. A Teologia do Corpo de São João Paulo II reafirma o corpo como morada da alma. O corpo na sua dimensão carnal acolhe e habita o que anima – vitaliza – a existência humana.

O que vemos no nascimento de um humano? Um minúsculo corpo que depois de 9 meses em que esteve unido com a Mãe se liberta, autonomizando-se.

É um novo ser que desponta e a inequívoca perceção dessa presença dá-se através da contemplação do corpo. A alma e o espírito coexistem, mas naquele preciso momento é o sôma que ocupa a centralidade do ser. É o que se percebe, pressentindo os outros elementos da trilogia paulina.

O novo cresce. Lentamente os pais começam a decifrar no rosto, nos movimentos e no choro do bebé a sua linguagem, sensações, o seu prazer ou desagrado. O corpo deixa de ser apenas a expressão do viver, passando a ser também a expressão do existir. Não tem apenas uma presença biológica, evidenciando uma outra dimensão, a metafísica.

Regressemos às imagens fúnebres do Papa Emérito. Facilmente se visualizava a sua dimensão corporal, particularmente o rosto e as mãos. As restantes dimensões não se veem, pressentem-se. Pressente-se a alma que animou a pessoa e o espírito. Pressente-se a excelsitude do ser humano.

Ao ver o corpo deitado de Bento XVI também se percebe a fragilidade humana. Estava ali um dos maiores pensadores da transição milenar.

O fogo de Prometeu que, segundo a mitologia grega, traz a luz ao humano, é o símbolo da centelha que transforma matéria simples em ser humano. Com efeito, do ponto de vista biológico, o humano é constituído pela matéria mais simples do universo. Mas é essa matéria que pensa, projeta, se maravilha perante o céu estrelado e sente o apelo do divino. É essa matéria que se deslumbra com uma representação da Natividade. É essa matéria que permite que projetemos a vida para além da morte.

Essa matéria per se pouco vale. Sem a centelha de Prometeu, sem a alma não seríamos humanos. É por isso que dizemos que “vai ali o corpo de…”. Não vai a pessoa nomeada, apenas o corpo. Perdeu alguma coisa. Mas há algo da pessoa que permanece, movendo tantas outras à sua presença, não apenas na emoção dos primeiros dias após a sua morte, mas como prática contínua.

Essa matéria per se pouco vale. Sem a centelha de Prometeu, sem a alma não seríamos humanos. É por isso que dizemos que “vai ali o corpo de…”. Não vai a pessoa nomeada, apenas o corpo. Perdeu alguma coisa. Mas há algo da pessoa que permanece, movendo tantas outras à sua presença, não apenas na emoção dos primeiros dias após a sua morte, mas como prática contínua.

Talvez o conceito de “anima” seja relevante para a compreensão do ser humano. O que é que falta ao cadáver para não ser apenas “o corpo de…”? Está lá a matéria toda, mas não está animada. Não tem vontade nem autonomia. Dirão alguns que falta a organização, uma vez que somos matéria com determinada complexidade organizativa, sendo a morte a cessação dessa organização. Outros dirão que é um dom divino.

Retornemos à imagem do Papa Emérito. O que é que lhe falta para se levantar e iniciar uma prédica? Será apenas a não organização material?

É difícil crer simplesmente na materialidade da vida. Essa condição pode ser tocada, mas o dom da vida apenas pode ser pressentido para além do sensorial.

Nem todas as pessoas conseguirão pressentir o que não é óbvio, rejeitando o caráter metafísico inerente ao humano. Porém, não deixam de ser sensíveis à beleza de uma obra de arte, à emoção de um jogo de futebol ou à lágrima de uma criança.

Relembremos o poema de António Gedeão, Lágrima de preta. O cientista recolheu num tubo de ensaio a lágrima de uma preta. Para analisar convocou os ácidos, os sais e afins, concluindo que se tratava de “água (quase tudo) e cloreto de sódio”. Mas essa simples água e esse sal são a expressão corporal do nosso pensar, sofrer, alegrar ou encantar.

Padre António Vieira alude à lágrima de piedade que escorreu pela face de Jefté quando por amor a Deus sacrificava a filha (“Um sacrifica a filha amada”, p. 309), em contraponto ao “outro [que matou sem compaixão] a filha aborrecida dos ídolos”.

O que difere uma lágrima de sofrimento de uma de alegria? Ambas são materialmente o mesmo, tendo sentidos diferentes. A vida humana está para além da matéria organizada. Adentra numa outra dimensão, possuindo fundamento e finalidade.

Para além da vulnerabilidade percebida no corpo do Papa Emérito, também se compreende a fragilidade da nossa existência, que é a nossa força.

Para além da vulnerabilidade percebida no corpo do Papa Emérito, também se compreende a fragilidade da nossa existência, que é a nossa força.

Com efeito, Pascal comparava a vida humana a uma simples cana. Não é necessário que a natureza se una para a quebrar. Basta uma pequena rajada de vento. Todavia o ser humano tem disso consciência, enquanto as forças naturais não o sabem. O conhecimento desta nossa fragilidade é ao mesmo tempo uma nossa poderosa força. É por isso que Pascal nos vê como canas frágeis e ao mesmo tempo poderosos pelo pensamento e pela dignidade.

Vulnerabilidade e fragilidade são condições humanas a que não nos furtamos e que o corpo exibe. Foi por isso que Bento XVI renunciou ao ministério petrino. Ao invés, foi por isso que São João Paulo II levou o seu pontificado até à morte. Enaltecemos ambas atitudes. Reconhecer que não se tem força para continuar a missão que é confiada, ou levá-la até ao limite, mostram que se é humano em toda a extensão da vida. Ser velho, estar doente e não ter receio de se mostrar, ou afirmar que não se tem energia para levar a bom porto a barca de que se é timoneiro, é aceitar a vida tal como transcorre para todos. Um Papa também envelhece, adoece e perde capacidades. Humanizar a doença, a velhice, a fragilidade e vulnerabilidade mostra a nossa excelência. Há quem não aceite as debilidades humanas. São, provavelmente, aqueles que contemplam o humano apenas como matéria organizada, pensando que como tal se pode reconstituir a organização e aspirar à eternidade.

No mundo por onde vivemos só se pede ação. Pensar, refletir, orar, ser sensível ou buscar a sabedoria são atributos suspeitos, como nos avisa Manuel Patrício. A ação sobrepõe-se ao pensamento. A vida reduz-se à matéria, subordinando-nos a uma conceção única.

Porém, nem sempre a realidade vai ao encontro dessa mundividência. É por isso que houve comoção pelo falecimento do Papa Bento XVI, que nem sequer era uma figura das redes sociais ou dos espaços mediáticos.

A matéria não explica a matéria. Só uma dimensão superior a justifica, pelo que o corpo do Papa Emérito é muito mais do que matéria. Ela está presente, mas não é uma matéria qualquer, sendo algo que foi chamado à existência por uma entidade superior, Deus.

Consideramos a matéria como quarto elemento na constituição do ser humano. É uma particularidade que o diferencia do resto da Criação. Nos animais o corpo é a matéria, mas no humano o corpo é a matéria já mobilizada pela razão, pela fé, por uma dimensão superior.

O corpo do Papa Emérito não é simples matéria. Continua e continuará a ser mais.

 

Notas:

  1. Universidade do Porto, Faculdade de Desporto
  2. Edgar Morin. O método II. A vida da vida. Mem-Martins. Publicações Europa-América, s/d
  3. Ver Primeira Epístola aos Tessalonicenses (5, 23): Que todo o vosso espírito, alma e corpo se conservem sem mancha para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Porém, São Paulo limitou-se a enumerar algumas características e não a estrutura essencial do ser humano
  4.  João Paulo II. Teologia do corpo. O amor humano no plano divino. Lisboa: Alêtheia Editores, 2013
  5. António Gedeão. Obra completa. Lisboa: Relógio D’Água, 2004 [163-164]
  6. Padre António Vieira. Sermão de Santa Bárbara. In Obra Completa, Sermões Hagiográficos I, Tomo II, Volume X. Lisboa: Círculo de Leitores, 2014 [301-327
  7. Manuel Ferreira Patrício e Luís Sebastião. Conhecimento do mundo social e da vida. Passos para uma pedagogia da sageza. Lisboa: Universidade Aberta, 2004 [68

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.