Este artigo foi publicado no jornal Observador no dia 18 de setembro
Daqui a poucos dias, em 21 de setembro, António Luciano de Sousa Franco faria 80 anos. Para marcar esta data, a Associação Portuguesa de Escolas Católicas (APEC) promove uma homenagem, com a apresentação do livro «António de Sousa Franco e a liberdade de educação», pelas 18 horas e 30 minutos, na sede da Universidade Católica Portuguesa (UCP), no Auditório Cardeal Medeiros.
Porquê, nos tempos que correm, recuperar-se um pensamento com 30, 40 ou 50 anos acerca de uma matéria que parece não surgir nas agendas políticas como prioritária? Por duas razões: porque se trata de uma liberdade (e como ela é importante!) e porque os fundamentos, as inquietações e as recomendações se mantêm, na sua essência, atuais.
Incompreensivelmente, num país que tanto lutou pela liberdade, continua a coarctar-se uma liberdade básica da sociedade: a liberdade de educação. António de Sousa Franco, atento a esta questão, não deixou de denunciar, antes e depois do 25 de abril, a injustiça que é os pais, mormente os mais desfavorecidos, não poderem escolher, sem encargos financeiros acrescidos, a escola de sua preferência para os seus filhos, quer ela seja pública ou privada.
Voltemos a Sousa Franco. No tocante à liberdade de educação, muitas vezes nas páginas da Brotéria, denunciou lacunas, ambiguidades e omissões no antigo regime, até mesmo quando surgiram raios de esperança no mandato de José Veiga Simão. No Período Revolucionário em Curso (PREC), grita bem alto que o ensino livre está “ameaçado” (e, efetivamente, esteve). E terá sido graças à sua insistência e persistência – juntamente com outros cabouqueiros como Mário Pinto, Jorge Miranda, Barbosa de Melo, Pedro Roseta, Mota Pinto (entre outros) – que no final da década de 70 do século passado se aprova a Lei de Bases da liberdade de ensino (Lei 9/79, de 18 de janeiro), um diploma revolucionário, ainda hoje em vigor, que abre caminho para a aprovação do 6.º Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo – o Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de novembro –, um documento deveras inovador, com visão larga e uma perenidade invulgar (33 anos). Com este quadro normativo assaz favorável, dez anos mais tarde, Roberto Carneiro – outro acérrimo defensor da liberdade de educação – faz aprovar mais um diploma visionário – o Decreto-Lei n.º 35/90, de 25 de janeiro, que define o regime da gratuitidade da escolaridade obrigatória (onde se inclui, embora sob reservas que gradualmente deveriam desaparecer, o Ensino Particular e Cooperativo).
António de Sousa Franco, atento a esta questão, não deixou de denunciar, antes e depois do 25 de abril, a injustiça que é os pais, mormente os mais desfavorecidos, não poderem escolher, sem encargos financeiros acrescidos, a escola de sua preferência para os seus filhos, quer ela seja pública ou privada.
Voltemos à Lei de Bases da liberdade de ensino. Recordemos o que o deputado Sousa Franco diz a este respeito, no decorrer de uma sessão plenária na Assembleia da República, em 1979:
«Pela primeira vez em Portugal, nos últimos cinquenta anos, se define um quadro legal progressista para o ensino privado e cooperativo, sem o qual não existe liberdade de ensino (embora esta alcance mais ampla dimensão e deva existir também no ensino público, como sempre se afirmou). (…) Julgo que esta lei é passo sério para introduzir estruturas e instituições democráticas na nossa sociedade, para respeitar um importantíssimo direito do homem – o direito ao pluralismo educativo. Não há sociedade pluralista sem que o sistema educativo seja pluralista: para isso se abre uma porta. Mesmo que ela seja estreita, revelaria fraco senso não a aproveitar. Pode ser este o começo do fim da estatização escolar em Portugal» (pp. 140, 145).
Infelizmente, não foi o fim da estatização. Depois de um período de três décadas em que foram efetivados alguns sinais de pluralismo educativo – designadamente os contratos de associação, que possibilitaram milhares de alunos oriundos de famílias desfavorecidas frequentarem escolas privadas, e os contratos simples e de desenvolvimento, com montantes significativos, que apoiaram famílias de menores recursos –, desde 2015, houve retrocessos nas sementes de liberdade e um profundo reforço ideológico do monopólio escolar estatal.
Neste cenário, como é atual este comentário do autor, escrito há 46 anos:
«Cumpre reconhecer que, em Portugal, o pobre ensino privado está preso por ter cão, e preso por o não ter… Pois se lhe recusam apoios financeiros ou outros, porque ele é ensino discriminatório de classes e para ricos – que esperar senão que, perante o aumento de encargos, ele se torne efetivamente discriminatório, de classe e para ricos? Veda-se-lhe qualquer saída evolutiva que lhe reduza o carácter deformado que nesta sociedade (…) sempre há de ter; e depois condena-se o ensino privado por isso mesmo… Caso é de perguntar: e o ensino oficial, não é também de classe, e em termos mais rígidos? Quer-se, afinal, libertar todos – ou oprimir todos?» (pp. 132/133).
Nesta abordagem ao “ensino livre”, António de Sousa Franco também fala da génese da UCP – a primeira instituição privada do ensino superior. E explica, em 1994, por que motivo a sua criação e, sobretudo, o posterior reconhecimento jurídico, ainda no antigo regime (1971), foram precursores de futuras conquistas:
«[O reconhecimento pelo Estado do estatuto jurídico da Universidade Católica] foi profundamente inovador, marcando o exercício da liberdade pela instituição e abrindo espaço de precedente para o reconhecimento mais amplo, que viria a ocorrer nos vinte anos seguintes da liberdade de ensino e geral» (p. 204).
Esta cumplicidade de Sousa Franco com a UCP levou a APEC a convocá-la para esta justa homenagem. Depois de discursos institucionais e de uma intervenção de Matilde Sousa Franco, haverá uma evocação do autor, por Guilherme d’Oliveira Martins. E a apresentação da obra a cargo da Reitora da UCP, Isabel Capeloa Gil.
Guiou-se, sem tergiversar, por critérios sólidos de qualidade, liberdade e universalidade: não contemporizava em matéria de rigor académico, pugnou por um ensino livre e plural e procurou alargar o acesso à educação como um bem essencial à disposição de todos» (prefácio).
Mas voltemos ao livro. Além de oito textos de António de Sousa Franco e dos testemunhos de pessoas que o acompanharam em muitas lutas e desafios, tais como Mário Pinto, Jorge Miranda, Eduardo Marçal Grilo, Guilherme d’Oliveira Martins e Pedro Barbas Homem, o livro contém uma mensagem enquadradora do presidente da APEC, Diác. Fernando Magalhães, as mensagens do Presidente da Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé, D. António Moiteiro, e da Direção da revista Brotéria (Pe. Francisco Mota). E um prefácio de António Guterres, escrito na véspera da eclosão da guerra na Ucrânia. Nestas circunstâncias adversas, como é significativo este trecho:
«[António de Sousa Franco] Guiou-se, sem tergiversar, por critérios sólidos de qualidade, liberdade e universalidade: não contemporizava em matéria de rigor académico, pugnou por um ensino livre e plural e procurou alargar o acesso à educação como um bem essencial à disposição de todos» (prefácio).
António Luciano (como carinhosamente era tratado pela esposa Matilde e pela família) foi um homem íntegro, um cristão convicto, um académico ilustre, um político dialogante e concertador. Morreu há 18 anos. Mas a sua garra, a sua inquietude, o seu pensamento, deixam rasto. E também estas suas palavras assertivas, escritas há 51 anos:
«O ensino livre pode-se revelar como expressão de uma síntese cultural mais perfeita e, também, como elemento imprescindível de uma verdadeira sociedade pluralista. (…) A escola, instituição social e “socializadora” há de ser imagem da sociedade em que vive: ou é pluralista e livre, ou fechada e não-livre» (p. 53).
Obrigado por este legado, caríssimo Senhor Professor António Luciano de Sousa Franco!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.