A família é a primeira célula da comunidade humana. É ali que entramos na história humana. Da total dependência a todos os níveis, desde o mais embrionário ao mais complexo e subtil, todos nos vamos tecendo no grande tear da vida, através de interdependências e de laços afetivos que nos tornam autenticamente pessoas. Ninguém é pessoa sozinho. A autonomia pessoal, sendo um valor humano inalienável, está longe de ser o primeiro e o mais importante. É na relação com os outros que nos compreendemos, que nos vamos tornando nós próprios e que vamos delineando uma perspetiva específica do mundo e da vida. A identidade constrói-se primeiramente ao nível familiar e, só depois, a nível individual; a identidade do sujeito é comunitária antes de ser individual. Daqui decorre uma enorme responsabilidade para as famílias cristãs, seja na educação dos filhos, seja no modo prático como vivem (ou não) quotidianamente o evangelho.
Jesus vem baralhar a concepção tradicional de família. São inúmeras as suas intervenções que obrigam a relativizar o conceito de família. Segundo S. Lucas, logo que atinge a idade simbólica de maioridade, Jesus cria uma crise tremenda na sua família e dá uma resposta teológica que obriga Maria a refletir estas coisas no seu coração: “Não sabíeis que devia estar em casa do meu Pai?” (Lc 2, 49). No que respeita à relação com Deus, a família fica, obviamente, em segundo plano.
Mas Jesus vai muito mais longe ao longo da sua vida. Senta-se à mesa com pecadores, priva com famílias desonradas e deixa-se tocar por pecadoras em casa de pessoas de boas famílias. Além disso, toma refeições sem cumprir os rituais de purificação previstos pela Lei. Estes gestos são muito mais do que falta de educação. São uma perversão do que era tido como religiosa e socialmente correto.
As refeições são um retrato bastante eficaz da sociedade ou do grupo social que se reúne à volta da mesa. As primeiras comunidades cristãs não eram exceção e introduziram uma novidade radical nas culturas em que o cristianismo se desenvolvia. À mesma mesa encontravam-se cristãos vindos do judaísmo e do mundo pagão (Act 10-11). Paulo fica profundamente consternado ao ouvir que em Corinto as diferenças sociais e económicas não se dirimem, antes se evidenciam, nas refeições eucarísticas (1 Cor 11, 20-22). Porque, de facto, as refeições dos primeiros cristãos quebraram os preceitos sociais e religiosos previstos e misturavam realmente pessoas diferentes a vários níveis. O sentido de pertença a uma nova realidade atenuava ou destruía as fronteiras que geralmente separam famílias e grupos sociais uns dos outros. Na nova comunidade judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher, todos são um em Cristo Jesus (Gal 3, 28).
Não é por acaso que Plínio e Celso referem como a nova e supersticiosa religião do cristianismo atrai membros de classe baixa, crianças e mulheres estúpidas e ignorantes e provoca a disrupção da ordem própria da família e da sociedade ao misturar gente de classes sociais diferentes.
Quanto à pregação, por vezes parece até que ser fiel à família é incompatível com ser discípulo de Jesus: “«Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos?» E, indicando com a mão os discípulos, acrescentou: «Aí estão minha mãe e meus irmãos; pois, todo aquele que fizer a vontade de meu Pai que está no Céu, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12, 48-50). “Porque vim separar o filho do seu pai, a filha da sua mãe e a nora da sua sogra; de tal modo que os inimigos do homem serão os seus familiares. Quem amar o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Quem amar o filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10, 35-37).
O filho pródigo é acolhido em festa e é-lhe devolvido o direito de pertença à família, contra a incompreensão do filho mais velho que vive segundo os standards do que é uma família fiel e correta (Lc 15, 11-32).
Uma família que eduque a sua descendência e todos os seus elementos de acordo com princípios, práticas e costumes cristãos, mas que se fecha em si própria e não abre realmente as portas de casa e não escancara as portas dos seus corações, se não distribui os seus bens por quem tem menos e não luta ativamente por um mundo mais justo, não é ainda uma família cristã.
De facto, a nova família instaurada pelo Reino de Deus anunciado por Jesus rasga as fronteiras dos laços sanguíneos e perverte o conceito tradicional de família. Uma família que eduque a sua descendência e todos os seus elementos de acordo com princípios, práticas e costumes cristãos, mas que se fecha em si própria e não abre realmente as portas de casa e não escancara as portas dos seus corações, se não distribui os seus bens por quem tem menos e não luta ativamente por um mundo mais justo, não é ainda uma família cristã.
O que está aqui em jogo é precisamente a família enquanto grupo social que faz circular entre si (negando ou pelo menos negligenciando aos outros) os bens materiais e sociais que angaria, de que dispõe ou pelos quais luta. Lealdade para com o próprio grupo e dedicação a um estatuto que sobreponha, oponha ou privilegie esse grupo diante de outros (mesmo que não seja diretamente contra ou “à custa” desses outros) é contrário ao evangelho. O evangelho denuncia precisamente esse modo de vida e propõe o oposto: partilha, serviço, entrega e compaixão com o próximo, especialmente com aqueles que vivem em necessidade ou nas fronteiras da sociedade.
“E, na terra, a ninguém chameis ‘Pai’, porque um só é o vosso ‘Pai’: aquele que está no Céu” (Mt 23,9). Esta relação filial com Deus, que atualizamos sempre que rezamos o Pai-Nosso, afirma a fraternidade entre todos os seus filhos. Não será esta a ajuda do Espírito que “intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm 8, 26)? Não podemos chamar Pai a Deus com verdade, se não consideramos os outros real e efetivamente nossos irmãos. Esta é a profundidade da ajuda do Espírito que em nós clama “Abba!” (Gal 4,6).
Mas Jesus não é, obviamente, contra a família. Depois de provocar a “crise familiar” aos doze anos, como vimos atrás, Jesus “voltou com os pais para Nazaré e era-lhes submisso” (Lc 2,51). Jesus é extremamente sensível à dor e ao sofrimento de quem perde alguém de família. Cura a sogra de Pedro, cura a filha de Jairo, cura o servo do oficial romano, ressuscita o filho da viúva de Naim, cura a filha da mulher sírio-fenícia. Importa que todos estes acontecimentos sejam referidos não apenas como curas, mas como pedidos de determinadas pessoas em relação aos seus familiares.
As crianças, que não gozavam de valor pessoal e de direitos individuais, são altamente consideradas por Jesus. Finalmente, a posição de Jesus quanto ao divórcio sublinha claramente a sua preocupação com a estabilidade familiar. Ainda que, neste caso, seja também profundamente adverso quanto à prática comum. A obtenção do divórcio, que na cultura judaica representava a expulsão da mulher por parte do marido, assegurava precisamente a preservação e a primazia dos interesses do homem sobre os direitos da mulher. A não aceitação do divórcio defendida por Jesus é justamente o reconhecimento do direito da mulher a ser protegida das inevitáveis consequências sociais e a limitação do controle arbitrário do homem sobre a mulher.
Dado o forte contraste entre o modo tradicional de estruturar e regular as funções sociais, através duma estruturação da família que espelha a organização da sociedade, e o ideal cristão de formar comunidades compassivas, inclusivas que unam crentes de diferentes estratos sociais em autênticas novas famílias, só podemos concluir que as famílias cristãs são, desde o início, fortemente contraculturais.
A Igreja enfrenta, como sempre, o grande desafio de tornar o evangelho real nas famílias cristãs. De facto, o carácter mais distintivo de uma família cristã seria o de ter as portas abertas, especialmente aos que mais sofrem e menos têm. No entanto, temos que reconhecer que grande parte das famílias cristãs, especialmente as das classes média ou média-alta, tem insistido em promover os bons valores cristãos dentro da sua própria família, muitas vezes esquecendo ou negligenciando a abertura das mesmas aos mais pobres e periféricos da sociedade.
A Igreja tem-se preocupado em promover uma formação forte na área da ética pessoal e da bioética (sexualidade, aborto, eutanásia…), mas não tem sido igualmente forte na área da ética social (partilha dos bens, justiça social…)
Correndo o risco de fazermos uma grande generalização – e as generalizações são sempre injustas –, a Igreja tem-se preocupado em promover uma formação forte na área da ética pessoal e da bioética (sexualidade, aborto, eutanásia…), mas não tem sido igualmente forte na área da ética social (partilha dos bens, justiça social…). Claro que as fronteiras entre ética pessoal e ética social não são estanques e questões como o aborto ou a eutanásia pertencem claramente a ambas as esferas. No entanto, apesar de uma tradição tão forte e tão rica no que respeita à doutrina social, a Igreja reconhece que as famílias cristãs, seja para se protegerem do “mundo”, seja para salvaguardarem os bens que produzem ou possuem para si e para os seus, são muitas vezes pouco sensíveis à partilha com os mais desfavorecidos.
É natural que os pais queiram proporcionar uma vida economicamente desafogada aos filhos. Mas também é verdade que o instinto de posse acompanha o ser humano desde sempre. Proteção da família, instinto de posse e desejo de proporcionar uma boa vida e um bom futuro à geração vindoura, pode provocar que a família se feche em si mesma e se torne insensível à obrigação cristã da partilha.
Claro que o ideal não é apenas a sensibilidade à partilha-esmola. Falamos de partilha de tudo: bens materiais, mas também sociais e espirituais. Quantas vezes a excessiva preocupação com os filhos conduz os pais a adotarem um tipo de educação sectarista. O desejo de que os filhos mantenham as relações de amizade dentro de um mesmo nível social ou superior, a não preocupação com a integração do diferente ou mesmo o evitar de encontros ou intimidades com aquele que “não é como nós”. O medo de que os filhos se corrompam na relação com os que são diferentes, leva a um estilo de vida do tipo tribal, em que as relações, as amizades, os namoros e os casamentos acontecem sempre entre de pessoas do mesmo nível socioeconómico. É a própria estrutura da família que deve ser questionada.
O desejo de que os filhos mantenham as relações de amizade dentro de um mesmo nível social ou superior, a não preocupação com a integração do diferente ou mesmo o evitar de encontros ou intimidades com aquele que “não é como nós”.
E, neste sentido, com a melhor das intenções, a família cristã típica colabora com a existência de sistemas injustos ou, pelo menos, abundantemente carentes de sensibilidade à justiça social. Mesmo dentro da família, fluem sistemas hierárquicos, às vezes injustos, que não são questionados. Num tempo em que nada é matizado, mas tudo é fraturante, é pena que a família cristã – autêntica instituição social intermédia – não surja como alternativa social que dê uma resposta credível de vida segundo o evangelho. O grande desafio é continuar a transmitir, preservar e insistir nos valores da ética pessoal, sem remeter para segundo plano aqueles da justiça social. Mas, para que este passo seja possível, é necessário questionar muitos pressupostos e abandonar muitos preconceitos sociais, sexistas e raciais.
O projeto de família cristã falha se não se baseia na denúncia de injustiças (dentro e fora da família), se não aceita abdicar do desejo de posse de bens materiais acima do necessário, se relativiza a radical vivência das Bem-Aventuranças (que começa com a Bem-Aventurança da pobreza), se não acolhe nem transmite aos filhos a alegria de uma vida simples que encontrou no próximo, no vizinho, no pobre e, inclusivamente no inimigo, alguém a quem amar verdadeiramente.
Para o Papa Francisco, este é o segredo de uma família feliz: “As famílias magnânimas e solidárias abrem espaço aos pobres, são capazes de tecer uma amizade com aqueles que estão a viver pior do que elas. Em última análise, vivem o que nos é pedido, de forma tão eloquente, neste texto: «Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos; não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim retribuir-te. Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. E serás feliz» (Lc 14, 12-14). Serás feliz! Aqui está o segredo duma família feliz” (AL 183).
PS – Assinala-se hoje o Dia Internacional da Família, celebrado pela ONU, pela primeira vez, em 1994. No 20ª aniversário deste dia, em 2014, a ONU reconhecia que, “devido às rápidas transformações socioeconómicas e demográficas, as famílias encontram cada vez maiores dificuldades em cumprir as suas numerosas responsabilidades. Muitos lutam para superar a pobreza e para prover adequadamente os membros mais novos e mais velhos da família. Também se revela cada vez mais difícil conciliar trabalho e família, bem como manter os laços intergeracionais. O tema deste ano é “Famílias e transformação climática”[1]. Em resposta aos grandes problemas atuais, e sabendo como as transformações climáticas que afetam o nosso planeta, acabam por atingir sempre em primeiro lugar e com maior severidade os mais pobres, a ONU pretende concentrar a sua ação na exploração de políticas e estratégias voltadas para a família, visando principalmente o enfrentamento da pobreza familiar; assegurar o equilíbrio entre trabalho e família e promover a integração social e a solidariedade intergeracional.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.