Nenhum caminho é demais

Fátima não é cool, não é rural, não é beta, não é reacionária, não é ideológica. Não é um lugar, uma capela, um santuário, uma devoção. É uma alternativa incontornável. É um sinal. Cada peregrino sabe que será sempre um cristão em processo.

Fátima não é cool, não é rural, não é beta, não é reacionária, não é ideológica. Não é um lugar, uma capela, um santuário, uma devoção. É uma alternativa incontornável. É um sinal. Cada peregrino sabe que será sempre um cristão em processo.

1. Um contexto

Não sei quantas peregrinações a pé já fiz na vida. Sei que Fátima, Vila Viçosa, Senhora da Lapa, Santiago são metas de um caminho interior nunca completamente percorrido. Nem sempre as fiz por mim. Acho que nunca as fiz para mim. Até hoje nunca fui um peregrino solitário. A pé, mas nunca só. Há mais de 30 anos que faço e acompanho peregrinações a pé, sobretudo de estudantes ligados aos Centros Universitários da Companhia de Jesus: CUMN (Coimbra), CUPAV (Lisboa), CREU (Porto) e CAB (Braga). Cada peregrinação tem uma história própria e uma graça recebida. A peregrinação dos Centros Universitários começou a ser feita logo a seguir ao verão quente de 75. Peregrinar não era uma “moda” como parece ser hoje e muito poucos grupos católicos de inspiração urbana tinham Fátima no horizonte. Fátima era uma romaria de “incultos” e “ beatos”, um mar de lágrimas contidas num único adeus.

A peregrinação destes Centros já teve vários modelos e percursos mas manteve sempre a sua identidade inaciana: tempos fortes de oração pessoal, em absoluto silêncio; momentos de partilha e testemunho; despojamento e total simplicidade; mochilas carregadas às costas e apoio só para o estritamente necessário; possibilidade de conversa e confissão pelo caminho; Missa celebrada dignamente no meio dos campos ou pinhais. Atualmente, a peregrinação dura menos dias e paradoxalmente, as manhãs são paradas a rezar, as tardes a caminhar a bom ritmo e as noites a desbravar a serra, em total confiança e abandono. A Fátima chega-se de madrugada com o santuário vazio e Nossa Senhora “só” para nós. É no rescaldo desta experiência privilegiada, e recordando todos os peregrinos, que me atrevo a escrever as palavras que se seguem sobre o que pode ser peregrinar.

 

2. Uma fé que mobiliza

Às vezes, idealizamos tanto a fé que só durante o caminho, quando os pés tocam no chão, é que percebemos como nenhum ideal é razão suficiente para nos fazer andar. Ao avançarmos, passo a passo, lenta ou apressadamente, cansados ou cheios de vigor, descobrimos que nenhum caminho de fé se reduz a uma estrada exterior que nos conduz a um santuário palpável. Se o caminho não é interior, nenhum passo, nenhum mesmo, nos fará tocar o inefável e atingirá a meta desejada.

Se uma peregrinação, com efeito, fosse apenas, uma metáfora da vida, então nenhum santuário poderia ser o “lugar” em que cada peregrino sente o apelo a uma vida mais santa e mais feliz. Cada peregrinação correria o risco de ser apenas a oferta do passado já vivido e nunca uma promessa de futuro. O peregrino pode não conhecer plenamente o caminho, pode desviar-se, enganar-se; pode caminhar só ou acompanhado, cheio de pressa ou lentamente, esvaziando-se ou enchendo-se mas o que não pode é apagar na memória a razão do seu peregrinar. Há um apelo, uma convocatória, uma fonte que o atrai. O percurso tem como meta visível um “lugar santo” e como objetivo a sua santificação, qual filho “perdido” que encontra a própria santidade no caminho para a santidade do Pai que o aguarda. Na realidade, a peregrinação tem uma dimensão paradoxal: o peregrino deixa a própria terra, a própria casa, para ir para um “outro lugar”, percebido como lugar em que se podem reencontrar as próprias raízes.

Para um peregrino que chega ao santuário “nu”, despojado de si, Fátima não é um assunto de jornais, uma alucinação corporativa, uma obstinação eclesial depois da dúvida, um fenômeno sociológico ou uma devoção fanática e descabida. É Evangelho. É Igreja.

P. Carlos Carneiro, sj

O peregrino experimenta um enorme desassossego interior à medida que se vai aproximando da meta. A paz que procura está no coração puro de uma mulher, Maria, a mãe de Jesus. O caminho para Fátima pode ter efeitos devastadores nas certezas iniciais do peregrino. O caminho transforma-se num apelo a uma desestruturação das seguranças e rotinas habituais. O peregrino aprende a ler o caminho e sabe que o espera uma Mãe, portadora de uma mensagem “brutal” que o obrigará a estar na vida em bicos de pés, a pôr-se em causa e sobretudo a investir na virtude de recomeçar. Cada peregrino de Fátima, sabe ou poderia saber, que a vida, como nos dizia o Papa Francisco em 2017 não pode ser uma “esperança abortada”, uma vez que “em Fátima, o céu desencadeia uma verdadeira mobilização contra a indiferença que nos gela o coração e agrava a miopia do olhar”.

Para um peregrino que chega ao santuário “nu”, despojado de si, Fátima não é um assunto de jornais, uma alucinação corporativa, uma obstinação eclesial depois da dúvida, um fenômeno sociológico ou uma devoção fanática e descabida. É Evangelho. É Igreja. Fátima existe antes de se lá chegar como um caminho místico e ascético que faz com que o peregrino se estruture internamente numa Igreja “jovem e bela, seja pobre de meios e rica no amor” (Papa Francisco, Fátima, 2017).

 

3. Um Peregrino faz-se por dentro

O peregrino não é um turista, um viajante ou um errante aventureiro. O Peregrino não caminha ao acaso, sabe o que quer, o que procura, para onde vai. Sabe o que tem, o que pode, o que precisa. Sabe pedir, sabe cair, sabe recomeçar, sabe esperar. O peregrino caminha sem tempo. A sua urgência não é chegar, é deixar-se transformar. Este é o milagre do caminho. O peregrino não se avalia pelas bolhas, pelas dores, pelos quilómetros percorridos. O peregrino quer ser transformado. Cada passo é uma possibilidade e uma esperança.

Para ser transformado, o peregrino sabe que não lhe chegam as paisagens deslumbrantes, a paz dos lugares mais escondidos, a mística dos mosteiros encontrados ou as fontes que refrescam os calores e as decisões da vida. O peregrino faz-se pobre, fica pobre, aprende a gostar de ser pobre. Nada pode, nada tem, só pode o que o amor pode. E o peregrino pobre, paradoxalmente, mesmo tendo um caminho exterior para fazer, descobre a riqueza de um caminho interior que urge percorrer, diminuindo a distância que liga a cabeça e o coração, os afetos e a vontade, a determinação e a liberdade. O peregrino consciente não tem desculpa para não pensar, não ver, não sentir, não vencer, superando limites e fronteiras. Tantos se fazem ao caminho mas tão poucos se deixam fazer pelo caminho. Tantos procuram o caminho mas tão poucos se transformam em caminho. Tantos cumprem a promessa do caminho mas tão poucos se descobrem já salvos e prometidos à eternidade.

4. O caminho é sempre interminável 

O peregrino não conta os quilómetros. O caminho até pode ser curto mas a peregrinação precisará de ser sempre longa e profunda. O peregrino verdadeiro não quer apenas chegar ao seu destino, à sua meta. O peregrino, sem ser dono do caminho, deixa-se moldar pelo caminho, ganha as suas cores e os seus cheiros, entra na paisagem. Não anda por andar, anda por dentro antes de andar por fora. Não lhe chega a aventura ou a curiosidade para o arrancar do sofá. Procura o que ainda não é. Não peregrina por moda, por necessidade ou por contágio. Peregrina porque vive todo o ano, toda a vida a peregrinar. Peregrina quando sai de casa para o emprego; peregrina quando passa os dias a investigar no seu laboratório ou a esculpir no seu atelier, peregrina quando dança, quando lê, quando conversa, quando cozinha, quando ama, quando sofre. Nenhum santuário o satisfaz. Nenhum fracasso o derruba, nenhum sucesso o ilude, nenhum abraço é bastante. O peregrino fica sempre mais leve de si e mais cheio de cada um. Corre para meta que é o Céu. Querer menos que o Céu seria trair a esperança que o habita só pelo facto de existir.

O peregrino sobe sempre uma montanha. Em cada tempo e em todas as tradições culturais e religiosas, subir a “montanha” é uma referência simbólica para a alcançar a dimensão do sagrado. É uma “ascensão” interior. E não poderia ser de outra maneira, se se considera que o relevo montanhoso coloca em conexão física e visível os dois elementos sagrados por excelência: a terra e o céu

P. Carlos Carneiro, sj

O peregrino sobe sempre uma montanha. Em cada tempo e em todas as tradições culturais e religiosas, subir a “montanha” é uma referência simbólica para a alcançar a dimensão do sagrado. É uma “ascensão” interior. E não poderia ser de outra maneira, se se considera que o relevo montanhoso coloca em conexão física e visível os dois elementos sagrados por excelência: a terra e o céu. O esforço da subida, e a Fátima não se chega sem “escalar” uma boa subida, é uma real experiência de desprendimento e de ascese. Subir só é possível quando se deixa para trás o desnecessário. O ar fica mais puro, a vegetação é menor, o coração bate com outra intensidade e é preciso saber respirar. Aí o peregrino percebe que não basta ter pés para andar. E até a força de andar precisa de ser expurgada. Ao subir a montanha, o peregrino encontra um Deus que o reza e que vive cheio de saudades, que conta as horas até o encontrar no seu regresso. Peregrinar para Fátima é, por isso, fazer muito mais do que um caminho exterior ou definitivo. O peregrino vai desejar voltar. Vai regressar. Peregrinar será sempre fazer um caminho a um santuário provisório.

5. Fátima é um “ desassossego”

Para quem acredita, Fátima será sempre muito mais do que um porto de abrigo ou um cais de embarque. É o lugar do improvável, do inesperado, do totalmente gratuito. É a casa da mensagem. É um privilégio da ação de Deus. Quis Deus na sua inesgotável misericórdia fazer peregrinar até nós a Senhora da Mensagem. Maria, a peregrina da vontade do Pai, pôs-se a caminho e encontrou no coração dos pastorinhos uma casa para ficar. Lembrando a experiência dos videntes, Bento XVI falou de “uma experiência de graça que os tornou enamorados de Deus em Jesus, a ponto de a Jacinta exclamar: «Gosto tanto de dizer a Jesus que o amo. Quando lho digo muitas vezes, parece que tenho um lume no peito, mas não me queimo». E o Francisco dizia: «Do que gostei mais foi de ver a Nosso Senhor, naquela luz que Nossa Senhora nos meteu no peito. Gosto tanto de Deus», acrescentou o Papa, citando as Memórias da Irmã Lúcia (Bento XVI, Fátima 2010).

Com os pastorinhos aprendemos a amar a Deus sem ser por nada. Aprendemos que o inferno é perder Deus pelo caminho, é caminhar sem os outros, é substituir o caminho pelo próprio Deus. Andar sem rumo, andar sem chama, andar para trás. Tal como os pastorinhos, cada peregrino recebe na sua luz interior o mesmo Jesus que Maria concebeu. Maria vem tirar-nos o medo de Deus e do mundo e ajudar cada um a reconciliar-se com a sua própria fragilidade.

O caminho de Maria foi simples e em abertura total. Maria não jogou à defesa nem se escondeu no seu jogo. Nela o Espírito de Deus encontrou o que procurava: disponibilidade total e confiança ilimitada. Maria arrisca um caminho novo, desconhecido, desprotegido. Deixa o caminho das suas previsões ou legítimas ambições.  Maria não vai nem pelo caminho mais seguro nem pelo caminho mais fácil. Maria vai pelo caminho mais fiel. As marcas que a orientam no cruzamento das suas opções não são as tão esperadas setas azuis ou amarelas. Maria procura dentro de si, no seu mapa interior feito de consolações e desolações, os sinais que fazem coincidir o seu mundo interior com a cartografia dos acontecimentos reais da sua história. Em cada passo do seu caminho, Maria discernia a vontade de Deus.

Em Fátima, Maria é uma mestra de vida espiritual. Ela é a primeira peregrina que seguiu o caminho da cruz, não porque Deus lhe seja estreito mas porque também na cruz Deus revela o seu poder frágil e glorioso. Este é o caminho que Maria quer que façamos para alcançar Deus em amor. Fátima não é apologia da dor e da promessa mas a evidência da conversão. Podemos chegar ao santuário de Fátima sem fazer a única promessa que Maria gostaria de nos ver cumprir: abrir a nossa cruz ao coração de Deus e à Igreja. Cada terço rezado será sempre uma meditação sobre o mistério de Deus que se fez homem. Toda a peregrinação é um êxodo, uma saída do próprio mundo. Descalço de si, cada peregrino toca o chão sagrado que lhe grita “Deus não está só aqui”. Por isso, nenhum peregrino fica em Fátima para sempre. E regressa, mais humilde e talvez mais consciente de que para ser peregrino “ad aeternum” não lhe basta ser autêntico, inteiro, livre, saber quem é e para onde vai. O peregrino descobriu que nenhum caminho é só uma metáfora da vida. É como um livro onde cada um se descobre como uma narrativa que Deus anda a escrever. Essa será a sua solenidade e o seu risco.

Fátima nasceu no quadro de uma luta católica pela liberdade da igreja e num cenário de guerras mundiais. O Portugal contemporâneo fez-se, pelo menos em parte, apesar de Fátima, num injusto preconceito que guetizou Fátima num fenómeno rural, popular, associando-a a um Portugal inculto e triste

P. Carlos Carneiro, sj

Fátima nasceu no quadro de uma luta católica pela liberdade da Igreja e num cenário de guerras mundiais. O Portugal contemporâneo fez-se, pelo menos em parte, apesar de Fátima, num injusto preconceito que guetizou Fátima num fenómeno rural, popular, associando-a a um Portugal inculto e triste. Muitos dos protagonistas maiores da nossa cultura viveram divorciados de Fátima. Nenhum regime gostou de Fátima. Mas Fátima nunca precisou da sua aprovação. O seu legado era outro. Fátima nunca quis substituir o Estado ou ser o fado de Portugal. Altar do mundo? A bala do atentado ao Papa João Paulo II é a pérola mais imprevisível da sua coroa de mãe. Fátima deixou de ser uma romaria nacional. Vive da libertação de cada peregrino. Isso é inegável e insubstituível. Fátima está cada vez mais “intimista”, “pessoal”, eclesial. Vive a sua verdade em cada peregrino que se recompõe, que se reconverte. A mudança é um facto inegável. Mas Fátima pede uma conversão progressiva, consistente. Nenhum peregrino fica uma obra terminada. Fátima não é tudo nem tem tudo. E embora também nos defina como povo, Fátima não é Roma nem é Jerusalém.

Fátima já não tem segredos. Ao ajoelhar-se no lugar onde Deus concedeu a graça às crianças de verem Nossa Senhora, o peregrino descobre que esta Mãe não tem segredos para si. Maria está ao alcance de cada um. Fátima só pede ao peregrino um abandono à imagem do abandono de Maria em Nazaré. Que têm os peregrinos de Fátima? Têm a conversão por caminho. São filhos de uma promessa que se cumpre dentro da alegria do Evangelho. Por isso, Fátima foi, é e será sempre, não só uma revelação particular mas uma enorme profecia. Ninguém é o mesmo depois de ter feito uma peregrinação. E porque nenhum caminho é demais, nenhum peregrino pode pedir ao caminho o que o caminho não tem. Só Deus é o caminho que todos os peregrinos procuram. Maria sabe-O e ao dizer-nos, cumpriu a sua promessa. Temos Mãe. Sob o seu manto ninguém se perde. Dos seus braços virá a esperança e a paz.

Fátima não é cool, não é rural, não é beta, não é reacionária, não é ideológica. Não é um lugar, uma capela, um santuário, uma devoção. É uma alternativa incontornável. É um lugar de vanguarda. É um sinal. Por isso, cada peregrino de Fátima sabe que será sempre um cristão em processo.

Fotografia principal: Rodrigo Cabrita

 

Consulte também a fotogaleria de Rodrigo Cabrita sobre Peregrinar

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.