Natal do Senhor num acorde

Eis chegado o momento, a hora tão esperada. E depois de termos esperado ajudados pela música, celebramos acompanhados por acordes que nos ajudam a entrar no Mistério. Uma forma excelente de nos prepararmos para a noite que aí vem.

Eis chegado o momento, a hora tão esperada. E depois de termos esperado ajudados pela música, celebramos acompanhados por acordes que nos ajudam a entrar no Mistério. Uma forma excelente de nos prepararmos para a noite que aí vem.

Eis chegado finalmente o momento, a hora tão esperada. Apressado, um casal como qualquer outro não encontra lugar onde repousar: uma Mãe prestes a dar à luz e seu esposo, ansioso porque não lhe arranja abrigo. Numa noite como qualquer outra, pastores ao relento cuidam de seus rebanhos e, surpreendidos, correm por causa do anúncio de vozes que cantam “Glória”. Na calmaria de uma noite como tantas outras, um astro diferente parece sobressair conduzindo sábios de terras distantes. Há toda uma pressa que parece convergir para um mesmo lugar, para um mesmo acontecimento, tão vulgar quanto único: um nascimento de um Menino.

Tão antiga e tão nova, esta história tão misteriosamente normal encerra em si a divindade escondida na simplicidade da humanidade. Julgo que passamos por ela, a cada ano, sem nos deixarmos maravilhar com a Vida que dela brotou e continua a brotar. Ela fala-nos de um Deus que, por Amor à Sua Criação, decide tomar a forma frágil de uma criança, que nasce num pobre lugar, nas periferias desse tempo. Ela fala-nos de uma humanidade que esconde a divindade, revelada apenas aos olhos dos simples, dos pequeninos que vêem mais fundo e mais longe. Ela fala-nos de tantas histórias de fragilidade e precariedade, de nascimentos escondidos e pobres que são sempre fonte de vida e renovação do mesmo Amor: seja na criança que é desejada e amada, ou naquela que é abandonada; seja naquela que nasce num contexto “regular”, ou na outra que é fruto da irregularidade e da imprevisibilidade. Todas, creio, são sinal de um mistério admirável.

Tão antiga e tão nova, esta história tão misteriosamente normal encerra em si a divindade escondida na simplicidade da humanidade.

O música popular portuguesa é vasta e rica e, infelizmente, muito desconhecida. Contudo, o contributo de alguns compositores da segunda metade do século XX, trouxe para a luz muita desta música tão nossa. Foi o caso, por exemplo, de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça que, acompanhados por um gravador, percorreram o nosso país em busca das melodias do povo. Lopes-Graça acabaria por trazer para o mundo da cultura erudita essas melodias, com o “rosto novo” da música coral.

A minha proposta para este tão esperado dia traz-nos, enfim, à música do nosso próprio país, na nossa própria língua. São melodias do nosso povo, com quadras populares, entoadas por tantas gerações, aqui adornadas por instrumentos e coros e solistas brilhantes. Ambas – como a maioria das músicas de Natal portuguesas – focam o nosso olhar na humanidade desta história e poderão ser valiosos instrumentos para contemplarmos o presépio com olhos novos.

A primeira peça que apresento é Pastores que andais na serra, uma peça de Natal tradicional de Trás-os-Montes, aqui orquestrada por Fernando Lapa (Vila Real, 1950-): «Pastores que andais na serra / Não corteis o rosmaninho: / É onde a Senhora estende / Os paninhos do Menino». A doçura quase embaladora das estrofes, contrasta com o Refrão – muitas vezes usado como estribilho do cantar dos Reis – que lhe confere uma energia e festa desde dia: «Anjos e Arcanjos em Jerusalém: / O Manso Cordeiro nasceu em Belém».

A segunda peça que proponho trata-se do Natal Minhoto, tradicional da região com o mesmo nome, aqui arranjado para coro pelo Pe. Manuel Faria (Famalicão, 1916-1983). Nela, o compositor conservou as particularidades do cantar do Minho. O texto conta-nos a noite de Natal: os Reis já vão a caminho para adorar o Menino, os Pastores já vão entrando, os Anjos contemplam. A doçura dos versos, como sempre, apontam para os cuidados de Maria por Seu Menino: «Nossa Senhora Lhe disse: / Filho meu, que Te darei? / Não tenho cama nem berço, / Nos braços Te criarei». Contemplemos, pois, a ternura deste quadro, com o auxílio da bela interpretação do Coral Ançã-ble (2005).

Como presente Natal, apresento ainda uma terceira peça, esta tradicional de Pias (Serpa, Beja): Ó Meu Menino. A versão que proponho, faz parte do incontornável Magnificat em Talha Dourada (2005), de Eurico Carrapatoso (Mirandela, 1962-): trata-se de uma obra de homenagem ao Barroco e a Bach, na qual o compositor intercala o texto latino do cântico de Maria, com peças populares de romaria ou de natal. É o caso do coral agora proposto.

Neste, como no anterior, um solista cantaria as quadras – «Ó Meu Menino, / Meu Doce Jesus, / Ó Meu Redentor, / Salvai-me, Senhor!» –, juntando-se-lhe todo o coro no estribilho. Trata-se de um louvor quase-contemplativo que é acompanhado por uma súplica «Ponde em nós os Vossos olhos, / Misericórdia-Amor!». Vale a pena escutá-lo, pois, com a mesma atitude contemplativa, fazendo nossas as suas palavras.

Que a espera (e a música) do Advento possa ter sido a útil para criar espaço para Aquele que, há dois mil anos, não teve lugar na hospedaria. Desejo-lhe um Santo Natal!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.