O verão pode ser uma oportunidade para o descanso ou para o caos. Numa família com vários filhos em velocidades distintas – entre os 8 e os 18 – (nota de rodapé: a autora considera o tempo de adolescência um tempo em excesso de velocidade e pondera fazer uma proposta de lei em conformidade), é fácil substituir o descanso com logísticas, calendários a várias cores conforme os programas, malas e roupa suja ou o trabalho para uns que, muitas vezes, significa “não fazer nada” para outros. Há uma gestão de expectativas vs gestão de programação sociocultural que me levou, ainda antes de iniciar férias, a uma sensação de exaustão misturada com um certo orgulho pelas novas competências adquiridas com a velocidade de “Check In/Check Out” que o meu universo familiar me proporciona (nota de rodapé dirigido ao ramo de hotelaria: sugiro começarem a efetuar ofertas a Pais de famílias numerosas, garanto que ficarão surpreendidos pela qualidade técnica). Apesar deste caos, dou por mim a agradecer e abraçar cada máquina de roupa suja, cada SMS a informar chegadas, os dias de regresso e também a refletir e preparar o tempo de descanso em família.
Assim, descansar tem (ou pode ter) uma forte ligação com a nossa vida espiritual, com o nosso crescimento na fé. O tempo de descanso em família pode ser um momento de transformação, de crescimento pessoal e espiritual.
Mas, afinal, o que é descansar?
Descansar no dicionário significa repousar, sossegar, tranquilizar, dormir. O verbo tem ainda um movimento quando é utilizado para representar a confiança, como por exemplo: “descanso em ti” que significa que confio em ti, me deixo cuidar por ti. Assim, descansar tem (ou pode ter) uma forte ligação com a nossa vida espiritual, com o nosso crescimento na fé. O tempo de descanso em família pode ser um momento de transformação, de crescimento pessoal e espiritual.
Como será que organizava a sagrada família o seu tempo de descanso? E como será que fazia Nossa Senhora durante a adolescência de Jesus?
Não existindo muitas passagens sobre o tempo de adolescência de Jesus, desafio a cada um de nós a pararmos na perda e o encontro de Jesus no Templo (Lc 2, 41-52):
Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, pela festa da Páscoa. Quando Ele chegou aos doze anos, subiram até lá, segundo o costume da festa. Terminados esses dias, regressaram a casa e o menino ficou em Jerusalém, sem que os pais o soubessem. Pensando que Ele se encontrava na caravana, fizeram um dia de viagem e começaram a procura-Lo entre os parentes e conhecidos. Não O tendo encontrado, voltaram a Jerusalém, à sua procura.
Três dias depois, encontraram-No no templo, sentado entre os doutores, a ouvi-los e a fazer perguntas. Todos quantos O ouviam, estavam estupefactos com a sua inteligência e as suas respostas.
Ao vê-lo, ficaram assombrados e sua mãe disse-Lhe: “Filho, porque nos fizeste isto? Olha que o teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura”. Ele respondeu-lhes: “Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?”
Mas eles não compreenderam as palavras que lhes disse.
Depois desceu com eles, voltou para Nazaré e era-lhes submisso. Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração. E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens.
À medida que (re)li este episódio, fui fazendo o exercício de o tentar viver a partir do ponto de vista dos diferentes protagonistas – Maria, José e Jesus. Foi a descoberta de um GPS para o “sacramento” do Encontro em tempo de descanso que me inspirou e será este o mapa das nossas férias. Com três paragens:
1. Paragem da Perda
2.Paragem da Procura
3.Paragem do Encontro
Paragem da Perda
A sagrada família foi de viagem de Nazaré até Jerusalém para a festa da Páscoa. Imagino que com menos malas do que nós levamos atualmente (e que não precisamos). Era costume fazerem isso. Mas neste ano, aos 12 anos de idade de Jesus, foi diferente. Regressaram a Nazaré sem Ele. Pode parecer estranho este regresso sem notarem que Jesus não estava e a explicação pode ser pela forma de organizarem as viagens (caravana), não sei, pois não conheço bem o contexto histórico. Mas senti-me simbolicamente identificada com Nossa Senhora e S. José pois, tantas vezes, não me apercebo do crescimento e amadurecimento dos meus filhos, mesmo estando ao lado deles. Perco-os. Não chega estar ao lado, precisamos, enquanto Pais, de procurá-los profundamente. Ter tempo e espaço para os escutar. Talvez tenhamos de os perder para crescermos. A maior arrogância do mundo adulto e de nós, Pais, é acharmos que já passamos por tudo o que os mais jovens passam. Não passamos. Passamos por várias coisas mas, assim como nenhum ser humano é igual, nenhum crescimento é igual. Os nossos crescimentos são feitos de contextos, episódios, aprendizagens, perdas em cada micro segundo da nossa vida que nos provocam, inevitavelmente, olhares, sentimentos e aprendizagens diferentes. O nosso crescimento enquanto adultos e Pais passa por perdas. Pela dor da perda e da fragilidade que nos transforma. Assim é, também, na Fé. Talvez Nossa Senhora e S. José tenham conhecido melhor o seu filho de Deus nesta perda.
A maior arrogância do mundo adulto e de nós, Pais, é acharmos que já passamos por tudo o que os mais jovens passam. Não passamos. Passamos por várias coisas mas assim como nenhum ser humano é igual, nenhum crescimento é igual.
Esta é uma paragem para não termos medo da perda mas antes para a reconhecermos como parte de um caminho de amadurecimento físico e espiritual. A perda, aqui, gostava que assumíssemos no sentido de ter dúvidas, perder a segurança da nossa relação com os nossos filhos. Com Deus. E, inseguros, continuarmos caminho até a próxima paragem.
Paragem da Procura
A infância, a juventude e o mundo adulto são etapas de crescimento na procura. O tempo de descanso é um tempo privilegiado para esta procura, sobretudo de sentido.
Caímos na tentação de proporcionar momentos únicos, idílicos, na praia ou no campo, com amigos ou família. Enquanto, a grande procura faz-se no silêncio e no…aborrecimento…Sim, aborrecimento. Talvez a frase que mais alegria me dá como Mãe, é ouvir: “não tenho nada para fazer”. Fico descansada, estão a descansar. Pode parecer estranho ou paradoxal, ao que o tempo de férias e descanso nos faz crer ser à luz do nosso incrível século XXI, mas talvez nesse campo seja uma Mãe mais do século XIX que proporciona imensos momentos aborrecidos.
Relembro a minha infância e o fascínio durante as férias em estar a ouvir os mais velhos, histórias que não percebia metade mas ainda habitam em mim. Sentia-me muitas vezes aborrecida quando me obrigavam a fazer sestas ou quando estava na cidade com a minha Mãe e os meus amigos em mil programas fascinantes. Sempre que dizia “não tenho nada para fazer”, a minha Mãe falava-me de poetas, filósofos, pintores, artistas. Quando dizia aos meus Avós que não queria fazer sesta, sugeriam-me ir à estante pegar num livro. E quando nenhum destes programas satisfazia o (meu) aborrecimento, olhava pela janela e via milhões de coisas únicas que nunca tinha visto antes. A ode ao descanso devia ter uma estrofe ao aborrecimento! Este aborrecimento faz-nos ver para lá do olhar, questionar, descobrir. Ensina a prestar atenção e ser criativo. Ver todas as coisas novas, seja qual for a circunstância, é uma forma de pedagogia.
A ode ao descanso devia ter uma estrofe ao aborrecimento! Este aborrecimento faz-nos ver para lá do olhar, questionar, descobrir. Ensina a prestar atenção e ser criativo. Ver todas as coisas novas, seja qual for a circunstância, é uma forma de pedagogia.
|Para explicar aos mais novos a importância do aborrecimento que nos desperta à atenção recomendo um livro infantil chamado “Nunca se passa nada no meu bairro” de Ellen Raskin. O livro fala sobre um menino, o Carlos Alberto, que passava os dias amuado por pressupor que no seu bairro não se passava nada. Enquanto imensas aventuras se passavam atrás de si, o Carlos Alberto, mantinha-se fechado sobre a sua insatisfação sem olhar à sua volta. Com esta atitude, deixou de prestar atenção, participar ou conhecer as histórias do seu bairro.|
Jesus fica em Jerusalém e “Três dias depois, encontraram-No no templo, sentado entre os doutores, a ouvi-los e a fazer perguntas.” Um Jesus, cheio de curiosidade, a descobrir. O nosso Senhor à procura. Esta foi uma grande novidade para mim e que me faz refletir como é importante voltarmos à adolescência, tantas vezes. Não apenas porque os nossos filhos estão nela (ou a caminho), mas sobretudo porque todos precisamos desta simplicidade de ficar a escutar, questionar e descobrir. O nosso crescimento na vida espiritual passa por momentos de adolescência, aventuras, dúvidas, zangas e tantas descobertas sobre Deus. Novidades que nos fazem olhar melhor para nós próprios, para a nossa família, para o mundo. Talvez fosse mais cómodo organizar mil programas em vez de dizer a 4 filhos – entre os 8 e os 18 anos – que gostava que nos “aborrecêssemos “ mas, tenho aprendido a não ter medo de ser Mãe e tantas vezes não ser compreendida ou compreender. Jesus não foi compreendido pelos seus Pais, pelo menos no momento: “Mas eles não compreenderam as palavras que lhes disse.” A não compreensão, é em si, também, uma forma de procurar.
Continuando a viver este momento, apesar da importância da procura, não podemos viver numa permanente aventura, sob pena de ficarmos presos a um mundo físico e espiritual infantil, desenvolvendo relações infantilizadas entre Pais e filhos, irmãos, amigos. Se por um lado, é um fundamental passo no crescimento, o passo maior está na próxima paragem. Caminhemos rumo à…
Paragem do Encontro
Imagino o desespero de Nossa Senhora e de S. José quando, durante três dias, não O encontraram. Voltaram para trás. Para Jerusalém. Não desistiram. Resistiram. Persistiram. Como tantas vezes fazemos. Na fé e na vida em família.
Ao fim de três dias, encontraram-No. Aqui reside a confiança que está intimamente ligada ao descanso. Com o descanso, na linha do verbo em movimento – confiança, voltamos a encontrar a fé e as relações. Reforçadas, aprofundadas, transformadas.
Jesus regressou a casa. Nossa Senhora compreendeu o seu crescimento, quem Ele é. Uma nova descoberta, um tempo que se transformou.
Perder faz-nos sentir inseguros e conscientes da nossa fragilidade, enquanto Pais, enquanto Pessoas. Assumir e aceitar as perdas, sejam elas físicas, relacionais ou espirituais é uma oportunidade para nos transformarmos, para voltarmos à adolescência, à aventura. Para nos aproximarmos uns dos outros. Sem idades. Para escutarmos os mais novos e os mais velhos. Assumir o silêncio num tempo de descanso é fulcral, para olhar pela janela e ver todas as coisas novas. E não ficar como o Carlos Alberto, do livro infantil. Mesmo que seja contra a corrente da agitação do verão e dos programas sem parar. Ceder à aventura maior que nos conforta e desafia, assusta e agarra. Procurar sem desistir. Resistir e esperar pelos filhos, mesmo sem compreender, voltando atrás, com confiança até ao “sacramento” do Encontro. Um encontro novo, com mais sentido. Porque se perdeu e foi procurado. Assim se ama e se é amado.
Depois desceu com eles, voltou para Nazaré e era-lhes submisso. Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração. E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens.
Jesus regressou a casa. Nossa Senhora compreendeu o seu crescimento, quem Ele é. Uma nova descoberta, um tempo que se transformou.
Cá por casa, o descanso vai assumir momentos de aborrecimento, como pedagogia e como criatividade. Como objetivo e resistência. Alguns vão-se perder e outros procurar. Com o GPS, rezo para que descubramos o regresso a casa, transformados. No Descanso, em Deus.
Boas Férias. Aborreçam-se!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.