Actualmente, a Rua das Flores é uma das artérias mais movimentadas e com maior oferta turística do Porto. Esta rua nobre, aberta no início do século XVI, a ligar o mosteiro de S. Bento de Avé Maria (demolido para se erguer a Estação de S. Bento) ao Largo de S. Domingos, é adornada de casas e antigos palácios – hoje muitos são hotéis, hostels, alojamentos locais e casas de restauração – que exibem nas suas belas fachadas um excelente trabalho de cantaria, elegantes varandas de ferro forjado, orgulhosas pedras de armas, a roda de St.ª Catarina ou a imagem de S. Miguel (marcas do Bispo ou do Cabido, seus proprietários originais), azulejos coloridos. Ao fundo, quase a chegar ao Largo de S. Domingos, ergue-se, imponente, a belíssima fachada da Igreja da Misericórdia, desenhada por Nicolau Nasoni e edificada em 1748 (na sequência de profundas obras de restauro na igreja quinhentista). No edifício contíguo à igreja, e que durante quase cinco séculos foi a sede da instituição na cidade nortenha, funciona desde 2015 o Museu da Misericórdia do Porto.
O museu, através da exibição selecionada de parte do seu acervo documental, artístico e cultural, pretende dar a conhecer ao visitante a história da Misericórdia do Porto e da sua acção ao longo do tempo. A visita ao Museu (Prémio Museu Português de 2016, atribuído pela Associação Portuguesa de Museologia) segue um percurso de cima para baixo, desde o terceiro ao primeiro piso. As peças estão muitíssimo bem apresentadas e dispostas, com bons textos de contextualização (em português e inglês) e o percurso a seguir é claro. A visita inclui o interior da Igreja (visto a partir do coro alto), de um estilo muito diferente que surpreende quem só conhece a fachada barroca.
No corredor que leva à primeira sala expositiva, enumeram-se as sete Obras de Misericórdia (espirituais e corporais), um excelente pretexto para, a partir delas, se apresentar a História da Misericórdia no Porto (fundada nesta cidade em 1499) e a sua acção social, cultural e espiritual. De facto, as Misericórdias procuram responder efetivamente aos deveres cristãos de instruir, aconselhar, consolar, confortar, assistir os pobres, tratar os doentes, visitar os presos, etc. No final desta visita fica-se a saber, por exemplo, que através da ajuda generosa de benfeitores, a Misericórdia do Porto ergueu e/ou administrou – em tempos idos ou ainda hoje – vários hospitais (entre os quais o de Santo António, Conde de Ferreira e Prelada), casas de recolhimento, asilos, internatos e prisões. É ainda nesta sala que se tem o primeiro contacto com a produção de artistas de nomeada, como António Carneiro (cuja infância foi passada no Asilo do Barão de Nova Cintra, pertencente à Misericórdia) e Aurélia de Souza.
Ao longo de quinhentos anos de história, o património histórico, social, cultural e artístico de uma instituição como a Misericórdia é, naturalmente, vasto e rico. Para além das obras encomendadas pela própria instituição (pintura, imaginária e ainda todos os objectos litúrgicos ligados às cerimónias religiosas – cálices, patenas, píxides, custódias, ostensórios, turíbulos, bacias, sacrários, crucifixos, etc – e as peças de paramentaria usadas em celebrações e procissões), juntam-se as doações dos benfeitores e as peças adquiridas com o fim de enriquecer e valorizar um importante acervo artístico, de que é exemplo a pintura de Diogo Teixeira “A conversão do Rei Godo Totila por São Bento em Monte Cassino”, adquirida recentemente e em exposição a partir de julho. Assim, ao longo da visita a este espaço museológico, o visitante é apresentado a parte da colecção de pintura, escultura, imaginária, ourivesaria e paramentaria.
A generosidade dos benfeitores permitiu a concretização de muitos projectos caritativos da Misericórdia. Os seus retratos compõem uma parte significativa do espólio de pintura do museu. O mais antigo data de 1649, estando em exibição retratos pintados por Sofia de Souza, Aurélia de Souza, Marques de Oliveira, Acácio Lino, Joaquim Vitorino Ribeiro e João de Almeida Santos, entre outros. Outros núcleos museológicos são compostos por obras de talha (o enorme painel de Nossa Senhora da Misericórdia – parte de um retábulo do século XVII –, é uma das peças principais) imaginária portuguesa e europeia, e peças mais pequenas, como marfins, pratas e paramentaria. Juntos traçam a história desta instituição e ilustram alguns dos seus momentos mais importantes.
Mas é a colecção de pintura que se impõe. Na galeria dedicada à pintura e escultura, as peças exibidas são verdadeiros tesouros da arte portuguesa e europeia. Todas as peças seriam de referência obrigatória. Na falta de espaço para as nomear, refiram-se a Sagrada Família do século XVII, de António Vieira, a Sagrada Família com o pequeno S. João Baptista, Santa Isabel e os Anjos, de Josefa d’Óbidos (adquirida em 2016, num leilão da Sotheby’s, em Nova Iorque), o Ecce Homo (segunda versão, de António Carneiro) e o intenso, profundo elindíssimo óleo de Gregório Lopes, datado de 1530-40: A Santa Face de Cristo, que por si só justificaria uma visita ao museu. Acrescentamos as pinturas de temática mariana que no final do século XVI Diogo Teixeira executou para a Igreja da Misericórdia (sobreviveram três de um total de cinco) e, claro, o Fons Vitae. É na sala onde se expõe esta obra-prima da pintura flamenga, atribuída a Colijn de Coter, pintor flamengo do século XV-XVI, que a visita ao museu termina.
Na denominada “Casa do Despacho”, onde se realizavam as reuniões dos irmãos e onde se tomavam as principais decisões relativas à instituição, duas obras se podem admirar. A obra de Rui Chafes “O meu sangue é o vosso sangue”, pensada para este local, e a famosíssima pintura do Fons Vitae, datada de 1515-17. Uma tem séculos de existência, a outra é contemporânea; uma é rica de pormenores e cores, a outra é austera e minimalista. Ambas completam uma leitura que não pretende deter-se no espaço interior.
Do Fons Vitae (quadro em baixo) já muito se escreveu.
Sentada de frente para esta obra tão grande, não procuro analisar a pintura. Prefiro olhar e sentir: a simetria da composição; a tensão carregada no primeiro plano da pintura; a vida quotidiana inalterada, vista num plano recuado; os sapatos da Virgem; os pés descalços de S. João Baptista; a orla bordada a ouro do manto da Virgem; o rigor do pormenor dos brocados, dos damascos, das sedas; o elegantíssimo penteado e toucado da rainha; a maciez do arminho das capas da rainha e das infantas; o cinzelado da fonte; a atitude devocional dos personagens; o infante distraído, que olha para o irmão; as mãos abertas de espanto do rei; as mãos em oração da rainha e suas filhas; as mãos vestidas de azul-acinzentado do bispo; a postura do rei e dos infantes; a postura da rainha e das infantas; os infantes, todos iguais ao pai; os rostos dolorosos da Virgem, de S. João Baptista e de Jesus;o vento que se levanta e faz esvoaçar as roupagens de N. Senhora e S. João Baptista e o perizónio de Jesus; as nuvens carregadas; o silêncio que se sente; a dor que se pressente; o sangue de Jesus a jorrar; a fonte de Misericórdia, Vida e Piedade quase a transbordar. Transborda para onde?
A escultura de ferro pintado de Rui Chafes procura dar resposta à questão.
Nasce junto à porta da entrada da Casa do Despacho, do lado esquerdo, e prolonga-se para fora, para a rua, em forma de jacto de sangue terminando numa gota, perpétuamente a pingar para o chão. Só se obtém uma leitura total desta obra quando se sai da rua e se entra no museu, se percorrem as suas salas e, na última, se passa da admiração do Fons Vitae para a contemplação da escultura. Porque esta peça, segundo o próprio autor, será uma “veia de sangue entre Jesus Cristo e os Homens, entre Jesus Cristo e a Terra. Será uma veia de que una tudo isto”. Portanto, uma veia de sangue que brota da Fonte de Vida que é Jesus, e se projecta para fora, para os homens, para o mundo.
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Informações úteis:
Localização e contactos:
Morada: Rua das Flores, n.º 15 – 4050-265 Porto (Mapa Google)
Telefone; 00351 220 906 960
Email; [email protected]
Horário
Todos os dias:
das 10h00 às 18h30 (horário de verão) – entre 1 de abril e 30 de setembro
das 10h00 às 17h30 (horário de inverno) – entre 1 de outubro e 31 de março
Encerrado nos dias 1 de janeiro, 24 e 25 de dezembro
Links:
Site do museu
Preços
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Este artigo foi previamente publicado no Caderno cultural da Revista Brotéria,
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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