Recentemente, em tomadas de posição de qualidade e autoridade diversas, voltou-se a discutir a “forma” da comunhão eucarística. A suscitar o debate tem sido, provavelmente, a “cerca sanitária” que levou a indicar a “comunhão na mão” como “forma imposta”. O debate que se tem seguido tornou-se bastante aceso, se não mesmo exasperado, ao ponto de se falar desta forma de receção da comunhão como “sacrilégio” ou “heresia”. Recentemente, Matias Augé fotografou muito bem os limites do debate, numa breve, mas acuta, reflexão [“A comunhão na mão e a pandemia”]. Um pouco antes, neste mesmo blog [Come se non], o prof. Claudio U. Contorti tinha feito uma recensão cuidada de um livro bastante frágil [Federico Bortoli, La distribuzione della Comunione sulla mano, Firenze, Cantagalli, 2018, com prefácio do Cardeal Sarah] que, de forma clara, manifestava os limites espirituais e científicos deste tipo de leituras exasperadas da tradição.
Para acrescentar clareza ao debate sobre o tema, gostaria de propor duas reflexões. A primeira tem já cerca de 50 anos e é retirada de um livro de J. Ratzinger, no qual se repropõem algumas reflexões de caráter espiritual sobre a Eucaristia e onde se encontra uma consideração interessante sobre “várias formas” de comunhão eucarística. De seguida, articularei uma breve meditação sobre a relação entre estas formas de comunhão eucarística e o seu impacto complexo na tradição eclesial.
a) Balthasar, Ratzinger e a dinâmica entre mão, boca e coração
Num texto dos anos 80, H.-U. Von Balthasar (Piccola guida per i cristiani, Milão, Jaca Book, 1986 – ed. orig. 1980 – 111-114) cita J. Ratzinger para defender a possibilidade de separar o “fazer a comunhão-comungar” da exclusividade da “comunhão na língua-na boca”. Escreve, ele, assim:
«Como pôde sentenciar Guardini, faz seu o escândalo ou escandaliza quem pretende ter razão aduzindo argumentos “penúltimos”, isto é, não perentórios. […] Além disso, aquilo que os tradicionalistas não consideram é que quase tudo o que é “novo” no missal de Paulo VI deriva das mais antigas tradições litúrgicas; que o seu peso pesado, o Cânone Romano, permaneceu inalterado; que receber a hóstia nas mãos e de pé foi habitual até ao século IX e que os padres da Igreja dão testemunho de que os fiéis tocavam devotamente olhos e orelhas com a hóstia antes de a consumirem. Não devemos esquecer, diz Ratzinger, que “impuras não são apenas as nossas mãos, mas também as nossas línguas” – Tiago diz que a língua é o nosso órgão mais pecaminoso (Tg 3, 2-12) –, “assim como o nosso coração… O risco mais elevado e, ao mesmo tempo, a máxima expressão da misericordiosa bondade de Deus é o facto de nos ser lícito tocar em Deus, não apenas com as mãos e a língua, mas também com o coração” (J. Ratzinger, Eucharistie – Mitte del Kirche. Vier Predigten, Munique, Erich Wewel, 1978, 45)».
Neste texto de Ratzinger, resulta muito clara a serena dinâmica da correlação entre mãos, boca e coração que merece ser submetida a uma análise ulterior.
Por isso, no “rito de comunhão” estão sempre implicados três níveis: o nível da exterioridade da mão; o nível da fronteira entre o interno e o externo que é a boca; o nível puramente interior do coração.
b) A tradição de “fazer a comunhão” e as formas da “fé eucarística”: das mãos aos joelhos e aos pés.
“Tomai e comei todos”. Desde sempre, a Igreja sentiu-se vinculada a este duplo imperativo. A ação de tomar implica um investimento próprio da mão; a ação de comer uma competência própria da boca. Porém, desde sempre, seja a mão, seja a boca, reenviam para lá de si mesmas, ou seja, para o coração, para a mente, para a alma, para a vida. Por isso, no “rito de comunhão” estão sempre implicados três níveis: o nível da exterioridade da mão; o nível da fronteira entre o interno e o externo que é a boca; o nível puramente interior do coração. Poderá ser muito útil considerar as relações múltiplas e complexas que ligam profundamente estes diversos níveis, que nunca são contraditórios entre si, mas, antes, polares e em relação tensional. Tento fazê-lo, considerando quatro perspetivas de exame.
1. O Nível antropológico
O facto de que a relação de intimidade com Cristo – com a sua vida e com a sua morte, com o seu corpo e com o seu sangue, com as sua palavras e com as suas ações – passe pela competência das mãos, da boca e do coração recorda-nos que o específico do ser humano está “na ratio e nas mãos” (Tomás de Aquino). Recorda-nos também que o que mantém unido a razão (ratio) e o tato (manus) é a linguagem, a qual tem na boca o seu órgão. A boca fala e a boca come. Come “por natureza” e fala “por cultura”. Mas a “cultura da boca” é tornada possível pelo facto de as mãos substituírem a boca em tudo o que seja “servil”. Apenas ao género humano acontece este milagre. Graças ao “tato delicado” é possível ao ser humano libertar a boca de algumas ações servis – arrancar ervas da terra, abocanharas presas para as devorar – para a tornar disponível para a palavra e, assim, aceder à razão. Deveremos dizer, portanto, que já no plano antropológico pensamos porque falamos e falamos porque as mãos libertam a boca para aceder à palavra.
É comum ouvir-se dizer: a mão é suja, precisamente porque é servil, ao passo que a boca é limpa. Porém, as coisas são bem mais complexas.
2. A experiência da “pureza ritual”
A primeira consideração feita no plano antropológico permite-nos reler a questão da “pureza” de modo renovado. É comum ouvir-se dizer: a mão é suja, precisamente porque é servil, ao passo que a boca é limpa. Porém, as coisas são bem mais complexas. Se a mão se suja facilmente, também se lava facilmente. Lavar as mãos é relativamente fácil, mesmo se a metáfora das “mãos limpas” [“mani pulite”] veio problematizar bastante a imagem. Pelo contrário, a boca pode sujar-se muito mais profundamente e para a limpar das palavras imundas é preciso muito mais tempo e se exigem procedimentos bem mais complexos. O mesmo se diga do coração. Um coração sujo, uma mente insana, um intelecto distorcido pedem purificação, terapias e práticas de cura que poderão levar a vida inteira. A exterioridade da mão não é sinónimo de “impureza” e a interioridade do coração não equivale a pureza.
3. O processo de transformação do sujeito
Comungar é “história de sujeitos” em relação com Cristo. A tradição da Igreja sempre soube que “tomar e comer” se encarna em “formas de manducação” que podem ser “sacramentais” ou “espirituais”. Comer com a boca ou comer com o coração são “usos do sacramento” – para citar a terminologia escolástica – que têm o mesmo conteúdo. Mas a forma não é irrelevante. A forma mais simples é a “espiritual”. Mas a sua “pureza”, que implica um investimento corpóreo muito limitado, é também o seu limite. Uma comunhão “só com o coração” é, por isso, ao mesmo tempo, o máximo e o mínimo da vida eclesial. Assim, uma relação “sensível” com o “pão eucarístico” – ou seja, uma relação não só “de coração”, mas de mão e de boca – sempre teve uma sua autoridade incontornável e fundamental. No caso do clérigo, de modo estrutural e ferial; no caso do simples batizado, de modo extraordinário e festivo. A “comunhão pascal” foi sendo o sinal secular dessa relação, sinal raro, mas resistente.
Assim, uma relação “sensível” com o “pão eucarístico” – ou seja, uma relação não só “de coração”, mas de mão e de boca – sempre teve uma sua autoridade incontornável e fundamental.
4. A disciplina da Igreja
A disciplina da Igreja foi interferindo em tudo isto, com as suas práticas e normas. Ao longo de muito tempo, a partir dos séculos X e XI, afirma-se uma prática segundo a qual apenas os sacerdotes tomavam, comiam e nutriam o coração. O povo de Deus era excluído, não só do “tomar”, mas, frequentemente, também do “comer”. Nutriam o coração sem tomar e sem comer, exceto uma vez ao ano [pela Páscoa]. No último século, com Pio X, a “comunhão frequente” – a partir de 1905 – começou a mudar o estado de coisas. Não apenas o “nutrimento do coração”, mas também o “comer com a boca” se tornou bem mais comum. Ainda mais recentemente, o “tomar” na mão recuperou o terceiro momento da prática que institui a Eucaristia e se torna “institucional”. Por isso, a suspeita em relação a este enriquecimento da mão, em relação à boca e ao coração, deve ser superada. Na disciplina eclesial, é fácil identificar o simples com o puro. Também no caso da Eucaristia a “comunhão espiritual”, compreendida como plenitude mais elevada, pode ser facilmente traduzida por uma forma de simplificação clerical. O acesso de todo o povo à plenitude das ações eucarísticas – tomar com a mão, comer com a boca e crer com o coração – é uma grande “escola da oração” (Paulo VI).
Se quiséssemos levar até às últimas consequências este raciocínio, deveríamos afirmar que além da mão, da boca e do coração, a Igreja encontra outros dois órgãos para a comunhão: os joelhos e os pés. Numa Igreja em que a mão dos fiéis não é investida de autoridade, à boca que recebe correspondem os joelhos. Esta foi por longos séculos a forma da “comunhão fora da missa”. Mas quando a comunhão voltou a fazer parte do rito da missa, à renovada autoridade da mão corresponde a renovada função dos “pés” na procissão ritual. Não apenas os joelhos, mas também os pés são capazes de culto e de adoração. Podem sê-lo na procissão para a comunhão, pela qual a Igreja recebe na mão, come com a boca e crê com o coração que a comunhão entre o Filho e o Pai, no Espírito, é dom para todos e que a todos transforma em “corpo de Cristo”.
Este texto foi inicialmente publicado no blogue do autor: Come se non.
Tradução: P. José Frazão Correia, sj
Fotografia: Ricardo Perna
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.