Listen: pobres que amam

É então que os rostos cansados do trabalho, da fome, da doença e da injustiça, são capazes de sorrir para quem amam.

É então que os rostos cansados do trabalho, da fome, da doença e da injustiça, são capazes de sorrir para quem amam.

Bem perto de nós, numa sociedade desenvolvida como a da Grã-Bretanha dos tempos que correm, um casal de emigrantes portugueses habita uma casa pequena de móveis usados. Com os seus três filhos menores, habitam um espaço limitado por paredes forradas em papel colorido. Tão gastas quanto os móveis, as cores revelam a precaridade daquele lar. Se ele está à espera que lhe paguem pelos biscates que foi encontrando num passado recente, ela sempre consegue ir fazendo limpezas de quando em quando. São eles quem cuidam, mesmo se sem recursos, de um bebé, de uma criança surda e de mais um filho adolescente.

Mas nem só de dor se vive naquela casa. Creio, aliás, que o grande mérito da cineasta portuguesa Ana Rocha de Sousa, em relação à sua primeira longa-metragem, Listen, reside precisamente nisso: no facto de nos mostrar como também se vive, à luz dos dias passados naqueles pobres subúrbios de Londres, o amor, a ternura, o sorriso dos laços que nos tornam pessoas amadas de uma mesma família. De facto, apesar de sempre estar presente ao longo da narrativa, a miséria nunca desfaz o amor da mãe, do pai, dos filhos, dos irmãos… Pois, mesmo quando toda a esperança parece desvanecer-se irreversivelmente, aqueles pobres vencidos deste mundo unem-se num abraço que nos revela um amor que humaniza. É então que os rostos cansados do trabalho, da fome, da doença e da injustiça, são capazes de sorrir para quem amam. E o sorriso daquela mãe não mente. Ela, que aos olhos de muitos parece ser negligente na educação dos seus, é capaz de tudo pelos filhos, seja roubar ou esquecer a doença que sofre.

É intenso o confronto que se estabelece entre a amor da família e a rigidez da lei.

Cruamente descrita, a realidade social da pobreza daquele lar não apaga a beleza do mundo que o filme nos leva a contemplar. Breves pausas na narrativa deixam-nos respirar. Seja o verde de uma pequena floresta à beira da paragem do autocarro, seja o piar de uns passarinhos ou uma menina de braços abertos ao azul do Céu, tudo isso nos dá uma breve experiência da beleza de mais um dia banal.

Contudo, não tenhamos ilusões. Nenhum lirismo apaga o drama. A filha do meio, Lu, é surda. E precisa de um novo aparelho auditivo, cujo preço está para além das possibilidades daquela família. Movidos pela vontade de justiça, e com uma boa dose de preconceito, os serviços sociais britânicos decidem retirar os filhos do casal emigrante. Para o aparelho burocrático do sistema, a decisão é irreversível. Mas o amor que os personagens vivem não deixa que história termine ali. É intenso o confronto que se estabelece entre a amor da família e a rigidez da lei. Trata-se de uma tensão que se acentua ao longo de uma narrativa onde vão emergindo pequenos contrastes:  a cidade com natureza, o trabalho e o tempo em família, o inglês alternado com o português, falar ora por palavras sonoras ora através da língua gestual, a ira e a paz, o ruído e o silêncio, o cansaço e a alegria…

Nesta coprodução entre Portugal e o Reino-Unido premiada no Festival de Veneza, a jovem cineasta Rocha de Sousa põe em causa o atual sistema de adoções da Grã-Bretanha. O enredo faz-nos sentir a injustiça que consiste em avaliar as capacidades parentais apenas, ou sobretudo, em função da sua capacidade financeira.  Injustiça esta que se faz acompanhar do preconceito a partir do qual todo um aparelho do Estado age em relação aos pobres emigrantes. Neste contexto, o zelo pelo bem-estar das crianças parece ser capaz de destruir famílias. É Lu, na sua surdez, quem melhor o revela. Pois, o sistema que a quer proteger da precaridade, de uma família supostamente desestruturada e incapacitada para educar os filhos, coloca-a num lugar onde ninguém pode nem quer comunicar com ela. Só a sua mãe, o seu pai e o seu irmão são capazes de comunicar com Lu. E desejam fazê-lo. Mas essa possibilidade é-lhes negada. Assim condenada à solidão, Lu deixa-se ficar num silêncio passivo que tudo observa. Entretanto, os restantes membros desta família lutam por reconstruir o seu lar. Sofrem os pais a quem lhes tiram os filhos, enquanto estes apenas desejam regressar à casa onde são pobres e amados pelos seus.

Sessões – informação aqui.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.