Laudate Deum: A proposta de uma ecologia cristã para o século XXI

Entre ativistas apocalíticos e negacionistas irresponsáveis, surge Francisco.

Entre ativistas apocalíticos e negacionistas irresponsáveis, surge Francisco.

Com a nova Exortação Apostólica Laudate Deum, o Papa posiciona-se em relação às alterações climáticas. Entre ativistas apocalíticos e negacionistas irresponsáveis, surge Francisco que assume a seriedade do problema. No latim tradicional da Igreja, introduz-nos à máxima do santo de Assis, que procurava “louvar a Deus em todas as Suas criaturas” (LD §1). E, assim, este apelo continua a ecoar hoje, tornando-se numa espécie de adágio para uma ecologia que se quer explicitamente cristã.

Oito anos após a publicação da Laudato Si’, o Sumo Pontífice volta a apresentar a «cosmovisão judaico-cristã» (LD §67) como horizonte de esperança para o futuro neste planeta. Se houver uma ecologia no magistério de Francisco, tratar-se-á certamente de fundar o respeito pela natureza na sua dependência em relação a Deus-Pai-Criador.

Quem ler Laudate Deum rapidamente perceberá que, para o Papa, não se trata apenas de preservar o meio ambiente. Francisco insere a questão no contexto mais alargado da dignidade da pessoa humana, cujo respeito se estende a todas as dimensões da sua vida, incluindo o âmbito da fé e da moral. Segundo o Sumo Pontífice, «trata-se dum problema social global (…) intimamente ligado à dignidade da vida humana»; uma questão, portanto, que vai muito para além da «abordagem meramente ecológica» (LD §3). É, por isso, necessário que «duma vez por todas acabemos com a atitude irresponsável que apresenta a questão apenas como ambiental, «verde», romântica». Convém admitir «que se trata dum problema humano e social em sentido amplo e a diversos níveis» (LD §58).

Segundo o Sumo Pontífice, «trata-se dum problema social global (…) intimamente ligado à dignidade da vida humana»; uma questão, portanto, que vai muito para além da «abordagem meramente ecológica» (LD §3). É, por isso, necessário que «duma vez por todas acabemos com a atitude irresponsável que apresenta a questão apenas como ambiental, «verde», romântica».

A figura de São Francisco é-nos proposta como modelo. Ao amar Deus acima de tudo, o poverello tornou-se num simples irmão de todas as criaturas a quem o Pai do Céu deu existência. De facto, nada nos faz amar mais o mundo do que a fé no seu Criador.  E quanto ao santo de Assis, ele não podia respeitar e cuidar mais dos animais, das plantas, da água… enfim, de todos os seres que com ele coabitavam a mesma terra. Para ele, era inconcebível que esse amor pela natureza pudesse entrar em concorrência com o louvor a Deus, acima de todas as coisas.

São Francisco faz-nos compreender a dinâmica cruciforme da nossa vida: enquanto dependermos verticalmente de Deus-Pai, mantemo-nos horizontalmente ligados a todos os seres deste mundo. A dependência em relação a Deus, faz-nos sentir irmãos uns dos outros – podemos até dizer que é essa dependência, e não a autonomia radical, que funda a fraternidade humana e ecológica.

Inspirado por essa visão, ou mais precisamente por essa experiência de fé, o Papa coloca propositadamente Deus no centro do louvor humano. Pois, de facto, sempre que ocupamos «o lugar de Deus» como detentores da verdade, acabamos por destruir os laços que nos unem e o mundo que nos é dado (cf. LD §73). Uma sã ecologia precisa de um ser humano suficientemente humilde para assumir que o mundo não foi feito segundo os seus caprichos. Quem se julga autossuficiente e todo-poderoso será incapaz de viver em conexão com as outras criaturas das quais também depende.

É por isso que o mundo não precisa de donos da verdade nem de senhores da história. Essa é a arrogância de uma certa «cultura pós-moderna» que o Papa critica e que julga situar-se na raiz do problema. Com efeito, para Francisco, o «paradigma tecnocrático», que prescinde de Deus, «está na base do processo atual de degradação ambiental» (LD §20), pelo menos no que às causas antrópicas diz respeito. Trata-se de uma ideologia, segundo a qual o ser humano pode, e deve, conhecer, prever, dominar e transformar o mundo a seu bel-prazer (cf. LD §22).

Nesse contexto, situamo-nos num horizonte sem Deus, onde impera uma mentalidade essencialmente individualista, cuja «liberdade» se exerce sobretudo por quem detém poder, seja tecnológico, financeiro ou político (cf. LD §36). À medida que formos pensando e agindo a partir desse paradigma, que o Papa designa por «tecnocrático», acabamos por nos separar da natureza. A solução passa, portanto, por contemplar esta terra de «dentro» e não como um mero espectador que a observa desde «fora» (cf. LD §25; citando LS 220).

Nesse contexto, situamo-nos num horizonte sem Deus, onde impera uma mentalidade essencialmente individualista, cuja «liberdade» se exerce sobretudo por quem detém poder, seja tecnológico, financeiro ou político (cf. LD §36). À medida que formos pensando e agindo a partir desse paradigma, que o Papa designa por «tecnocrático», acabamos por nos separar da natureza.

A este respeito, convém observar como certos movimentos ecologistas contemporâneos convergem com o paradigma tecnocrático, na medida em que acabam por isolar a esfera humana da natureza. De facto, a humanidade separa-se do mundo tanto quando o transforma a seu bel-prazer, como quando prescinde de desenvolver as suas sociedades. Para ambas as visões, o progresso humano e social opõe-se necessariamente à preservação do meio ambiente.

Na visão do Papa, pelo contrário, a natureza não se separa da cultura humana. Por um lado, ele reconhece os perigos da atividade antrópica que afeta negativamente o meio ambiente, como a poluição que constitui uma das causas da degradação ambiental. Contudo, por outro lado, Francisco recusa-se a aderir ao ativismo violento e irresponsável, de quem bloqueia arbitrariamente estradas em dias de trabalho ou atenta contra a integridade física de pessoas que não comungam das mesmas ideologias. Não é possível agir em prol do ambiente a partir de uma atitude violenta. Quem o faz, separa-se dos outros, daqueles que partilham o mesmo planeta, a mesma casa comum. Essa é, de facto, a atitude de quem julga tudo conhecer e prever; de quem se arroga o direito de tudo dominar e transformar segundo o seu próprio ponto de vista.

É neste contexto de crescente polarização ideológica e fragmentação social que o Papa insiste na necessidade de regressarmos a uma perspetiva holística. Citando a sua última Encíclica, Fratelli tutti, Francisco afirma: «a pandemia Covid-19 veio confirmar a estreita relação da vida humana com a dos outros seres vivos e com o ambiente, mostrando de modo particular que aquilo que acontece em qualquer parte do mundo tem repercussões sobre todo o planeta. Isto permite-me insistir sobre duas convicções que não me canso de reiterar: “tudo está interligado” e “ninguém se salva sozinho”» (LD §19).

A partir desta perspetiva, percebemos que a ecologia requer o respeito pela dignidade da pessoa humana. É por isso que, sem pudor, o Papa assume um «antropocentrismo situado» (LD §67). Se o ser humano ocupa um lugar de destaque no seio da criação, não é para a dominar como um senhor todo-poderoso, um sujeito criador ou um mestre do Ser. Ter um lugar privilegiado na natureza significa ser capaz de amá-la ou destruí-la. O antropocentrismo situa-se na interdependência com as outras criaturas e na responsabilidade que a liberdade nos impõe.

Não é possível agir em prol do ambiente a partir de uma atitude violenta. Quem o faz, separa-se dos outros, daqueles que partilham o mesmo planeta, a mesma casa comum.

A partir da espiritualidade franciscana, o Papa procurar fazer-nos viver uma ligação fraterna com as outras pessoas e criaturas, nossas irmãs. De facto, ter Deus como Pai comum, leva-nos a prescindir da violência de quem só confia na força para impor o seu ponto de vista, ou de quem considera que a realidade consiste em partes intrinsecamente separadas umas das outras. A perspetiva judaico-cristã não vê o mundo e a história como o resultado de uma luta constante, qual tensão dialética, entre diversos pontos de vista que se negam e transformam interminavelmente uns aos outros. Trata-se, antes, de construir a comunhão entre diferentes seres que dependem de um mesmo Pai.

Desse modo, é fácil compreender por que razão o ativismo expresso em gestos de violência não encontra espaço numa ecologia explicitamente cristã. Neste quadro, o convite é para cooperarmos, tanto a nível local quanto global, uns com os outros. «São necessários [diz-nos o Papa] espaços de diálogo, consulta, arbitragem, resolução dos conflitos» (LD §43).

Na medida em que reconhece a seriedade da situação, ao mesmo tempo que evita o exagero das ideologias apocalíticas, Francisco mostra ser equilibrado nas suas posições. Ele está, de facto, disponível para colaborar com todas as pessoas de boa vontade em prol de uma transição energética ponderada. Só assim será possível definir com razoabilidade os tempos e os modos desta transição, por forma a proteger a casa comum e os irmãos que nela vivem.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.