João Semedo: um homem de olhos abertos

Adversário político, Pedro Mota Soares, aprendeu a estimar João Semedo (1951-2018). Esta crónica é uma homenagem, mas também a prova de que o apreço e o diálogo sério e sereno são possíveis em política entre "adversários" que se respeitam.

Adversário político, Pedro Mota Soares, aprendeu a estimar João Semedo (1951-2018). Esta crónica é uma homenagem, mas também a prova de que o apreço e o diálogo sério e sereno são possíveis em política entre "adversários" que se respeitam.

Falávamos do Benfica. Aconteceu-nos muitas vezes, no caminho ou no intervalo de debates que nos colocavam em campos opostos, tentarmos encontrar temas que não nos dividissem. Sempre achei que era um sinal da inteligência e sensibilidade apurada do João Semedo encontrar terrenos de aproximação. E é verdade que poderíamos ter outros, mas a afinidade clubística é sempre a mola mais forte para ultrapassar as nossas diferenças. Mas o gosto pela política, pela intervenção cívica, pela defesa apaixonada de ideias, rapidamente se sobrepunha à bola. Afinal, era outra coisa que nos unia, ainda que na maior parte das vezes em barricadas distintas.

Desde muito novo que o João Semedo teve consciência e intervenção política. Lembro-me de o ouvir contar que as conversas com o Padre Feytor Pinto o levaram a abrir os olhos para uma realidade que até então estava distante, da guerra, das dificuldades dos bairros sociais, das desigualdades gritantes da sociedade de então.Que também isso, para além da influência da família, o levaria a militar contra o Estado Novo e mais tarde a aderir à UEC e ao PCP. Que a influência do tio, Artur Semedo, o levaria a “militar” no Benfica.

Desde muito novo que o João Semedo teve consciência e intervenção política. Lembro-me do o ouvir contar que as conversas com o Padre Feytor Pinto o levaram a abrir os olhos para uma realidade que até então estava distante, da guerra, das dificuldades dos bairros sociais, das desigualdades gritantes da sociedade de então

Pedro Mota Soares

Conheci o João pessoalmente em 2006, quando assumiu funções no Parlamento, ainda deputado independente, eleito nas listas do BE, que mais tarde chegou a liderar. Reconheci nele um lutador pelas suas ideias. Alguém que o fazia de forma convicta, combativa e preparada e esses são sempre os adversários mais temíveis. Foram mais os temas que nos dividiram, do que aqueles que nos uniram. E às vezes, até quando coincidíamos no voto, sabíamos que o fazíamos por motivos bem distintos.

Acompanhei em 2010, com a Isabel Galriça Neto, os primeiros projectos de lei sobre os cuidados paliativos. Iniciativas do BE e do CDS. Com o voto igual e solitário do CDS e do BE. Ambas chumbadas. Mas lançou-se essa semente à terra, que viria a dar frutos na legislatura seguinte, já aprovados pela unanimidade dos deputados. Singularidades do processo político. Retenho dessa altura as muitas conversas francas que tive com o João. Sobre a forma como encarávamos o fim da vida e a noção que tínhamos da dignidade da vida humana. E se acabámos a coincidir no voto, não foi por pensarmos os dois da mesma maneira.

Cada um convicto à sua maneira, cada qual pelo seu caminho – porque são muitos os caminhos que nos podem levar à mesma casa – acabámos por dar o nosso contributo para um Portugal melhor.

Podemos ter diferenças, muitas e profundas; podemos ter ideias muito contrastantes mas isso não nos deve deixar de ter a lucidez de respeitar e admirar quem se bate pelas suas convicções. O João Semedo fez isso até ao fim. Descansa agora em paz.

Foto de capa: Site do Bloco de Esquerda

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.