As feridas não são de agora. Agora, com a pandemia, só ficaram mais expostas. Em alguns casos agravaram-se, operando mesmo processos de regressão teológica e prática. Refiro-me concretamente ao campo da liturgia e à forma eclesial.
Tenho bem claro que a Igreja, por aderir responsável e solidariamente a um bem maior, aceita viver temporariamente numa condição de privação ou de limitação, aplicando protocolos sanitários nas suas acções litúrgicas e na celebração dos sacramentos. Limitam ou ferem aspectos do acto litúrgico para preservar do mal maior que é o contágio. Por enquanto, não as poderemos evitar nem dispensar. No essencial, este ponto está assumido. O que me parece menos claro é o grau de consciência reflexa que teremos, pastores e comunidades cristãs, do significado e do alcance, a meu ver problemático, que um conjunto de práticas sanitárias e afins, aplicadas na liturgia e a partir da liturgia, poderão ir gerando na compreensão que temos da Igreja e do seu modo de estar no mundo, sobretudo se essas práticas vierem a prolongar-se no tempo. Por serem essencialmente linguagem não-verbal, têm força simbólica e performativa. Sem recorrer a linguagem verbal e sem que se tenha imediata consciência do processo, há práticas higiénico-sanitárias, seguidas no âmbito litúrgico e sacramental, que vão deixando a sua marca e modelando identidade. À força de repetição no tempo, enquanto formas externas, vão conduzindo a alterações internas, exercendo influência sobre sentimentos, pensamentos, disposições. Geram, por isso, determinados modos de ser e de estar em Igreja, dos quais poderemos não nos aperceber imediatamente, mas que, de facto, têm efeitos na realidade eclesial e, em muitos casos, estão manifestamente em contradição com o que se professa. Declara-se implicitamente uma coisa, mas actua-se efectivamente uma outra. A título de exemplo, fala-se de comunhão – supõe-se, evoca-se, invoca-se, apela-se – mas inúmeras práticas higiénicas e de segurança introduzidas são de desconfiança, de protecção e de isolamento; canta-se que “formamos um só corpo”, ao mesmo tempo que se pede e se evita qualquer proximidade e contacto corpóreo.
O que me parece menos claro é o grau de consciência reflexa que teremos, pastores e comunidades cristãs, do significado e do alcance, a meu ver problemático, que um conjunto de práticas sanitárias e afins, aplicadas na liturgia e a partir da liturgia, poderão ir gerando na compreensão que temos da Igreja e do seu modo de estar no mundo, sobretudo se essas práticas vierem a prolongar-se no tempo.
Em paralelo, este estado de coisas tende a reforçar e, em alguns casos, a legitimar a recuperação de entendimentos teológicos e litúrgicos que o Vaticano II quis intencionalmente superar, por os considerar insuficientes e já inadequados, nomeadamente no que toca à compreensão da Igreja, dos sacramentos, do sacerdócio comum dos fiéis ou do sacerdócio ministerial. Afirma-se e faz-se como se o Concílio Vaticano II não tivesse existido e não nos determinasse eclesialmente, ou, então, como se pudesse ser posto ao lado de outros precedentes, parecendo ficar ao critério de cada um escolher qual deles mais lhe convém (para clarificação, é importante ter presente que a boa relação eclesial com a tradição implica que seja à luz do Vaticano II que se lê Vaticano I ou Trento, e não ao contrário). A operação é grave. Tenhamos bem presente que ideia de liturgia e modelo de Igreja caminham sempre e intimamente juntos, de tal modo que poderíamos adaptar para este campo um conhecido ditado popular: “diz-me como celebras e dir-te-ei em que Igreja crês”. Assim foi também no Concílio Vaticano II, lugar eclesial maior onde desaguou, foi confirmado e relançado o essencial da caminhada do movimento litúrgico, longa de mais um século. As suas três grandes constituições são prova dessa íntima relação entre reforma da liturgia (Sacrosanctum Concilium – SC), compreensão que a Igreja tem de si mesma (Lumem gentium – LG) e estilo da sua presença no mundo (Gaudium et Spes – GS). O ponto de partida foi, precisamente, a reforma da liturgia, porque é por aí que se começa. En passant, não é de estranhar que, habitualmente e também hoje, resistências à reforma da Igreja se exprimam com particular incidência no campo litúrgico.
A operação é grave. Tenhamos bem presente que ideia de liturgia e modelo de Igreja caminham sempre e intimamente juntos, de tal modo que poderíamos adaptar para este campo um conhecido ditado popular: “diz-me como celebras e dir-te-ei em que Igreja crês”.
Mas vindo ao ponto de partida e procurando descer ao concreto, sublinho três campos que me parecem merecer especial atenção. Por dever de economia, faço pouco mais do que enunciá-los.
a. A linguagem não-verbal da higienização e, implicitamente, da desconfiança.
Por nos dar um pano teológico de fundo e algumas imagens plásticas em forma de contraponto com o que direi a seguir, vale pena citar o n. 88 de A alegria do Evangelho (EG), do Papa Francisco. Não se refere à liturgia, mas, mutatis mutandis, também se lhe poderá aplicar. «Assim, como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações impessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas que se podem acender e apagar à vontade. Entretanto, o Evangelho convida-nos sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com os seus sofrimentos e as suas reivindicações, com a sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado. A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a carne dos outros». Sublinho: “alegria contagiosa”, “permanecer lado a lado”, “risco do encontro”, “presença física”, “pertença à comunidade”, “reconciliação com a carne dos outros”. Estando, hoje, na prática litúrgica e sacramental, tão longe deste modo corpóreo e “contagioso” de proceder e de estar, impõe-se que nos interroguemos. De que modo se está a realizar visivelmente na liturgia, sendo esta a expressão mais elementar da fé cristã, a força invisível que procede do Evangelho, evocada por Francisco neste texto?; que odres poderão – e deverão – conter a vitalidade deste vinho novo?; que corpo dará forma a este espírito, quando se tem que evitar o encontro e a presença física ou quando a comunidade se forma e se exprime como mero somatório de indivíduos desconfiados, mudos e apagados que se evitam e ignoram? O risco da contradição simbólica é, de facto, grande.
No momento presente, muito especialmente na celebração da Eucaristia, a linguagem não-verbal assume particular relevo, dizendo bem mais do que a linguagem verbal: rostos tapados; mãos higienizadas em vários momentos – por vezes, revestidas por luvas protetoras; limitação de qualquer gesto de proximidade; contínua distância de segurança; lugares marcados e separados o mais possível uns dos outros, quando não previamente reservados; deslocações limitadas ao mínimo indispensável; proibição do gesto da paz e inibição de algumas respostas; canto ainda mais limitado do que o habitual a solistas ou ao pequeno coro; etc. O acolhimento no espaço litúrgico tende a ser funcional e inexpressivo, já que a tónica é toda posta na segurança e na protecção. Conduz-se impessoalmente cada um ao seu lugar, como numa qualquer sala de espectáculos. Repetem-se informações técnicas sem empatia nem emoção, como num qualquer outro lugar público onde se reúnam várias pessoas para usufruir de um serviço. Como espectros, pode chegar-se e partir-se distantes e indiferentes aos demais, sendo difícil reconhecer vestígios de comunhão. Parece haver mesmo um ou outro pastor tentado – será o termo justo – a não dar de todo a comunhão na Eucaristia aos fiéis. Em termos de contágio, corta-se o mal pela raiz. Mas, então, que bem fica? Sem querer, obviamente, a liturgia poderá estar a dar o seu contributo significativo para a “globalização da indiferença” e para o “relativismo” que, justamente, a Igreja tanto contesta. Assim, dificilmente terá lugar e expressão a comunidade viva de baptizados que se reconhecem mutuamente e que, na alegria, celebra festivamente um dom surpreendente e imerecido que alimenta a vida e gera corpo eclesial.
Sem querer, obviamente, a liturgia poderá estar a dar o seu contributo significativo para a “globalização da indiferença” e para o “relativismo” que, justamente, a Igreja tanto contesta.
b. A dispensa do corpo e a mortificação dos sentidos: só espírito, só cabeça.
Não é de agora, de facto. Mas, agora – dramaticamente, diria –, este traço ficou bastante mais vincado. Individualmente e de forma passiva, assiste-se a um ato sagrado exterior, todo ou quase todo realizando pelo ministro ordenado, ajudado por uns poucos oficiantes. Destina-se ao interior, pressupondo que o alimento do espírito pouco tem que ver com a edificação do corpo eclesial e que comungar Cristo vivo não implica tornar-se com outros corpo vivo de Cristo. A graça recebida parece, pois, toda interior, individual e cerebral. A vida expõe-se como conteúdo ou como preceito. Chega pela cabeça, por meio da explicação de ideias e da compreensão intelectual. Cumpre-se pela vontade. Dispensa-se e evita-se a relação tangível, os sentidos, a emoção, a imaginação. Higieniza-se ou cobre-se a pele. Põe-se em contenção máxima o corpo real (agora, os mais idosos e doentes estão mesmo dispensados: na Eucaristia estão autorizados a ser corpo ausente). Não há tacto nem contacto. O dos desinfetantes, é o único perfume que nos ficou, que perfume não é. Professa-se o sentido evitando os sentidos. Em síntese, comunga-se o Corpo dispensando o corpo. Dificilmente, por isso, poderá haver emoção e paixão, proximidade e reconhecimento, investimento da existência e imaginação do Reino. A este propósito e como direito deste avesso, bastaria citar o n. 48 da SC: «os cristãos não entrem neste mistério de fé [a Eucaristia] como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na acção sagrada, consciente, activa e piedosamente». Longe deste “estilo”, caberá perguntar seriamente: que graça será essa que se celebra e se comunga se não excitar nenhum sabor ou fragância, se não tocar a pele, se não for melodia para o ouvido, brilho para os olhos?; que vida divina será essa se não convocar e implicar a vida corpórea e sensível de homens e mulheres reais: se for Vida por cima, ao lado, à revelia da vida?; que comunhão faremos se o Cristo comungado não nos tornar mais Igreja – história e caminhada de sujeitos em relação entre si e com o seu Senhor: corpo mais vivo, mais visível e mais sensível do mesmo Cristo?
Como dizia acima, neste tempo de pandemia e por mais um tempo, tem que ser assim. Mas, para ser como deve, precisamos de ter clara consciência de que assim não está bem. A liturgia em geral e a Eucaristia em particular não resistem ao registo da desconfiança e da protecção, do isolamento individual e da imunização ao outro. E não resistem ao registo do espírito sem o corpo tangível e sensível – no fundo, sem vidas reais de homens e mulheres concretos; da espiritualidade da interioridade sem a mediação corpórea; do dever geral e da devoção pessoal sem comunidade que celebra festivamente; da conversão do coração sem reforma da Igreja.
Como dizia acima, neste tempo de pandemia e por mais um tempo, tem que ser assim. Mas, para ser como deve, precisamos de ter clara consciência de que assim não está bem. A liturgia em geral e a Eucaristia em particular não resistem ao registo da desconfiança e da protecção, do isolamento individual e da imunização ao outro.
c. A participação individual, por dever ou devoção, e a passividade da assembleia.
O dever individual ou a devoção privada, que têm, obviamente, grande valor e que, para muitos cristãos, são porta e caminho para uma relação vital e fecunda com a Eucaristia, tendem a sobressair desajustados sobre o acontecimento comunitário festivo, corpóreo e sensível. A privatização da fé cristã e a desconsideração da sua identidade comunitária saem fortemente reforçadas. Mesmo correndo o risco de estar a carregar um pouco as cores e de não fazer justiça à experiência pessoal de tantos baptizados, hoje, a Eucaristia parece convocar cada cristão para que se apresente individualmente, ou em família nuclear, como cidadão responsável para que a celebração possa acontecer em segurança. Não deve tocar e não deve ser tocado para não ser contaminado. Não se deve mexer para evitar riscos. Devidamente afastado dos outros, apático e quieto no seu lugar, por dever, com devoção ou alheado, pode ficar a assistir ao conjunto de gestos e de palavras que o ministro ordenado faz e diz no espaço do altar. Se virmos bem, este quadro também não é de agora. Expressões não pouco frequentes como “ouvir missa”, “assistir”, “cumprir o dever”, “dizer missa”, “celebrar missa sozinho” dizem imenso de um passo largo de reforma litúrgico-eclesial ao qual o Vaticano iniciou e impeliu a Igreja, mas que ainda estamos longe de assumir com paixão, de incorporar pastoralmente e de realizar com arte. Na verdade, a pandemia não fez mais do que expor a falha e a falta, intensificando-as.
Ficou mais exposto o traço clerical da Igreja e a menorização da graça baptismal e do sacerdócio comum dos fiéis. No contexto litúrgico, sobressai e vê-se reforçada a centralidade de clérigos e oficiantes, por um lado, e, por outro, a passividade da assembleia, que, mais do que reconhecer-se e agir como corpo plural e orgânico, se forma e se gere como agregação de indivíduos “estranhos ou espectadores mudos”. No meio, em concreto a Eucaristia, fica como dispositivo ritual que parece funcionar de forma automática. Celebrada “ativamente” por um, o ministro ordenado, é dispensada “passivamente” a todos, de tal modo que, se estes não pudessem estar, parece que nada de essencial se perderia. Aquele celebraria sozinho por todos e para todos. No fundo, no fundo, a assembleia de pessoas reais poderia ser dispensada. Bastaria haver um ministro ordenado. Bastaria celebrar sozinho, sem povo. No entanto, para ser como deve, não pode ser assim. O Vaticano II compreendeu o culto cristão como uma acção comum. Escutar a palavra é uma acção comum. Comungar a carne e beber o sangue de Cristo é uma acção comum. Não são acção de um só, à qual outros assistem passiva e inexpressivamente, nem são distribuição de bens sagrados que os fiéis receberiam unicamente para a salvação das suas almas. A Eucaristia, compreendeu-a como constitutivamente comunitária, reconhecendo o papel estrutural do povo de Deus. Bem mais do que ofício eclesiástico ou acto ritual do “padre” ou bem mais do que direito e dever dos fiéis, é acção de toda a comunidade sacerdotal, composta por todos os baptizados que se reúnem em nome de Cristo, presididos por um ministro ordenado. De facto, o ministro está dupla e inseparavelmente ordenado ao serviço de Cristo que convoca e ao serviço da Assembleia convocada. Por isso preside a uma Igreja que celebra, sendo o acto de celebrar estruturalmente plural (como referência teológica-litúrgica de suporte a quanto estou a afirmar, vejam-se, por exemplo, os nn. 91.93.95-96 da Instrução Geral do Missal Romano, texto que, como recorda o liturgista Andrea Grillo, é «parte integrante da recepção da Reforma [litúrgica operada pelo Vaticano II, exposta e assumida na sua Constituição sobre a sagrada liturgia, SC], constituindo, portanto, como que uma forma de “hermenêutica em acto”»).
No contexto litúrgico, sobressai e vê-se reforçada a centralidade de clérigos e oficiantes, por um lado, e, por outro, a passividade da assembleia, que, mais do que reconhecer-se e agir como corpo plural e orgânico, se forma e se gere como agregação de indivíduos “estranhos ou espectadores mudos”.
Em conclusão
Ao concluir esta reflexão, em forma de chamada de atenção crítica, em tempos particularmente exigentes para a prática litúrgica e sacramental, gostaria de repetir o que já afirmei antes. Neste momento, continuam incontornáveis determinados protocolos de higiene e cabe continuar a observar as alterações introduzidas nos ritos litúrgicos e sacramentais, com ênfase na celebração da Eucaristia. Dito isto, considero da maior relevância tomar boa nota de como estas práticas são lesivas da linguagem simbólica e performativa da liturgia e como incidem directamente na forma eclesial, podendo deixar-nos bem longe do caminho da reforma litúrgica ao qual o Vaticano II nos iniciou ou desviando-nos mesmo dele. Por isso, exigem-nos uma consciência mais fina e cuidados maiores. Estando litúrgica e pastoralmente conscientes das limitações, contradições e riscos, será mais fácil geri-los em tempos de mortificação e de suspensão. Do mesmo modo, ficaremos mais despertos para retirar frutos positivos desta crise, para superar inércias, desajustes e entorses na compreensão da acção litúrgica e nas práticas celebrativas dos sacramentos, algo que, na realidade, já vinha de longe e tinha ampla expressão antes da chegada da pandemia. Maior acerto teológico, arte de celebrar mais refinada, renovado vigor pastoral hão-de dar um contributo significativo para a necessária renovação de práticas litúrgicas e actos sacramentais que dão vida ao corpo eclesial e impulsionam a reforma da Igreja, sempre a fazer.
Nota: o autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.