“quem é frágil não se reconhece como autossuficiente; sente, pelo contrário, a necessidade de ser amado e de amar os outros; é preciso assumir a própria fragilidade para poder acolher um dom maior que nós mesmos”
Apesar de ter sido um dos principais representantes da corrente fenomenológica em França, na esteira de Henri Maldiney, Jean-Louis Chrétien não foi apenas um filósofo. A sua obra vai para além de uma abordagem puramente filosófica, ao menos segundo uma certa mentalidade contemporânea, na medida em que entra, com frequência, em diálogo com as Escrituras bíblicas, ao ponto de as receber quase como uma revelação. Para os críticos, como Mikel Dufrenne e Dominique Janicaud, essa abertura acabou por o situar num âmbito alheio à filosofia ou à fenomenologia propriamente dita. Não por acaso, esses críticos colocaram-no na gaveta da viragem teológica da fenomenologia francesa (cf. D. Janicaud, Le tournant théologique de la phénoménologie française (1991).
É verdade que Jean-Louis Chrétien pediu para ser batizado já em adulto, numa idade em que, hoje, muitos dos filhos do nosso tempo sentem ter perdido a fé herdada dos antepassados e da cultura do passado ocidental. No entanto, a abertura à experiência religiosa e ao conteúdo das Escrituras Santas não se deve a um dogmatismo religioso acrítico, mas antes ao rigor estritamente fenomenológico de receber tudo o que aparece como um fenómeno digno que nos é dado a escrutar. Mais do que filósofo ou teólogo, talvez ele tenha sido sobretudo um poeta. Não tanto por ter entrado na reputada Bibliothèque de la Pléiade (cf. Anthologie de la poésie française – Tome II. DuXVIIIe au XX esiècle, nº 467 (2000), mas sobretudo pela enorme sensibilidade que revela em percecionar toda a riqueza escondida nas inúmeras realidades que se manifestam constantemente em nosso redor.
Foi no dia 28 de junho que Jean-Louis Chrétien deixou o mundo que tanto amava, com apenas 66 anos de idade. Oito dias depois, no seu funeral em Paris, foram muitos que lhe renderam homenagem. O filósofo Jean-Luc Marion, próximo de Jean-Louis Chrétien, não só nas ideias mas sobretudo pela amizade, frisou o “exemplo” de vida que sempre viu no seu amigo.
Ser frágil não significa ser fraco. Pois a fragilidade surge como condição de possibilidade de muitos fenómenos que nos realizam enquanto homens e mulheres: ser frágil é ser capaz de mudar, de se transformar, de se converter; quem é frágil não se reconhece como autossuficiente; sente, pelo contrário, a necessidade de ser amado e de amar os outros.
Apaixonado pelas coisas mais simples deste mundo, Jean-Louis Chrétien soube não ser mundano. Apesar de raramente ter viajado, fechando-se constantemente no seu trabalho, foi capaz de percorrer e aprofundar as realidades simples dos homens deste mundo. Em Symbolique du corps (2005), por exemplo, descreve a diversidade dos elementos do corpo humano e a força dos seus gestos. A simbólica do corpo orienta-nos para um invisível que nos habita e que jamais poderá ser reduzido à racionalidade técnico-científica. Através de uma “fenomenologia da oração”, repara como nós, seres humanos, nos caracterizamos por um “dom” recebido e por uma “ferida” que nos abre sempre ao que ultrapassa as perceções imediatas dos sentidos (cf. La Parole blessée, in Phénomenologieet théologie (1992)).
Tal “ferida” constitui um dos elementos da condição humana enquanto “fragilidade”. Eis o tema sobre o qual Jean-Louis Chrétien se focaliza nas suas últimas obras (cf. Fragilité (2017). Descrevendo as diversas figuras e manifestações da fragilidade humana, o fenomenólogo acaba por mostrar a positividade da nossa condição. Mais que escamotear ou superar a fragilidade, sempre presente num ser mortal, Jean-Louis Chrétien acaba por nos convidar a assumi-la e a integrá-la. Ser frágil não significa ser fraco. Pois a fragilidade surge como condição de possibilidade de muitos fenómenos que nos realizam enquanto homens e mulheres: ser frágil é ser capaz de mudar, de se transformar, de se converter; quem é frágil não se reconhece como autossuficiente; sente, pelo contrário, a necessidade de ser amado e de amar os outros; é preciso assumir a própria fragilidade para poder acolher um dom maior que nós mesmos, maior que a nossa própria vida; sem fragilidade seria impossível abrir-se ao que de bom houver para além deste mundo.
Ler a obra de Jean-Louis Chrétien enche-nos de esperança. Porque, se os seus estudantes gostavam de o apelidar de Sócrates, de mestre, ele próprio considerava que “o sábio só pode ser um exemplo, não porque ele seja um mestre, mas por se deixar conduzir por uma força mais alta que a sua, a força do Espírito” (in La sagesse apprise au pied de la croix). Tendo-nos deixado mais de vinte obras, resta-nos agora continuar a estudar e a aprofundar o seu pensamento, de forma a podermos acolher e agradecer o dom da sua vida.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.