O 25 de Abril, o dia simbólico da nossa democracia, precisa de ser celebrado, também em 2020. Neste momento de dificuldade, de incerteza e de ansiedade, o povo português precisa, como nunca, de celebrar o dia em que o poder lhe foi dado. As nossas instituições democráticas – que existem para servir e sentir com os cidadãos – têm portanto o dever de, perscrutando aquele que é o sentir das pessoas neste momento da história, encontrar formas adequadas de celebrar este dia.
A nossa Assembleia da República continua, e muito bem, em funcionamento com um número reduzido de deputados, e o hemiciclo continua a reunir-se para o trabalho, permitindo a tomada de decisões num momento de crise para o país. Sabemos também que, no dia 25 de Abril, os deputados estariam ali reunidos não propriamente para trabalhar, mas para celebrar simbolicamente, em nome dos portugueses por quem foram eleitos, a democracia.
Durante as últimas semanas foram-nos pedidos – e exigidos com coerção – grandes sacrifícios pessoais e comunitários em nome do bem comum. E por isso, abdicamos pessoalmente daquilo que nos é fundamental para, num espírito verdadeiramente democrático, minimizar o sofrimento da comunidade. Apesar das medidas severas impostas, apesar do sofrimento presente, os portugueses não deixaram de alimentar a esperança. Não obstante viverem um tempo difícil e de isolamento, os portugueses continuam – das formas mais criativas – a celebrar as datas importantes das suas vidas. Os portugueses sabem que confinamento social, covid-19, quarentena, não têm que ser sinónimos de uma proibição de festejar, muito menos de festejar os dias maiores e mais significativos das nossas vidas.
Parece que as nossas instituições têm falta de imaginação e continuam apegadas a uma rígida liturgia quando chega a hora de celebrar a democracia.
Todas estas celebrações têm porém decorrido em moldes muito diferentes daquilo a que estávamos habituados. Tivemos que abandonar ritos ancestrais e puxar pela nossa criatividade para nos mantermos unidos, diante das restrições impostas. Infelizmente, parece que as nossas instituições democráticas não possuem a mesma flexibilidade e criatividade que o resto da população. Parece que as nossas instituições têm falta de imaginação e continuam apegadas a uma rígida liturgia quando chega a hora de celebrar a democracia. Por um lado, pedem sacrifícios aos cidadãos – sacrifícios que tocam até aspetos sensíveis e rituais fundamentais da vida humana, como o acompanhamento do nascimento e da morte, como as celebrações familiares, ou as tradições enraizadas na vida das nossas comunidades. Mas, por outro, parecem pouco importar-se da exigência e do impacto emocional e psicológico que esses sacrifícios acarretam para a vida pessoal dos cidadãos. E, como sabemos, quando as instituições democráticas se distanciam e se alheam da vida concreta das pessoas, fica aberto o caminho ao populismo antidemocrático, que sabe bem usar – e já o está a fazer – aquilo que as nossas instituições parecem estar a ignorar: o sentir das pessoas.
O 25 de abril é uma festa carregada de simbolismo. E creio que seria muito saudável para a nossa democracia e para o povo português que, neste momento excecional, as instituições pudessem encontrar uma forma de celebrar – com toda a pompa e circunstância – a democracia, sem que tivessem de “encher” a Assembleia da República de, pelo menos 127 pessoas (77 parlamentares e 50 convidados), para além dos órgãos de comunicação social, transmitindo uma ideia de superioridade em relação aos restantes cidadãos. Creio que a decisão de celebrar o 25 de abril com um significativo número de pessoas presentes dentro do hemiciclo é uma imagem forte, que poderá ter um impacto muito negativo para uma considerável parte da população portuguesa que, com muito sacrifício e em nome do bem comum, tem respeitado as restrições impostas, num profundo espírito democrático. De facto, o que está em causa não é o mero (in)cumprimento de regras de segurança e distanciamento; não se trata, em primeiro lugar, de uma questão de saúde pública nem de regras! Em causa está precisamente uma questão simbólica: a imagem de uma Casa da Democracia com pelo menos 130 pessoas a celebrar o 25 de abril, num momento em que aos cidadãos é pedido que enterrem os seus mortos na presença de umas dez pessoas…
Como sabemos, quando as instituições democráticas se distanciam e se alheam da vida concreta das pessoas, fica aberto o caminho ao populismo antidemocrático, que sabe bem usar – e já o está a fazer – aquilo que as nossas instituições parecem estar a ignorar: o sentir das pessoas.
Cante-se o hino nacional e o “Grândola vila morena” nas varandas, ponham-se cravos à janela, nas portas, nas lapelas, vista-se roupa de festa, comemore-se Abril, e que as figuras maiores da República, e os representantes dos partidos eleitos democraticamente, bem como a deputada não inscrita, façam os seus discursos públicos no hemiciclo. Mas sejam criativos, por favor! Não estamos em tempos de ficar presos a rituais. As pessoas precisam de se sentir simbolicamente acompanhadas no sacrifício que estão a fazer. E os cidadãos amantes da democracia, saberão criativamente celebrar o 25 de Abril, talvez mais efusivamente do que tem acontecido nas últimas décadas.
A imagem do Papa Francisco a falar para uma Praça de São Pedro vazia, num fim de tarde chuvoso, há umas semanas atrás, correu o mundo e tocou o coração de muita gente, muito para além dos crentes. Nas presentes circunstâncias, a imagem de uma Assembleia da República (quase) vazia a celebrar o 25 de Abril falaria muito mais de democracia do que um apego quase cego a um certa liturgia de Estado. É que num momento como o que estamos a viver, uma imagem falará muito mais do que a fidelidade a determinados rituais ou do que discursos muito bonitos sobre democracia.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.