Yten ay una caxa de plata dorada que de plata y echura costo dos mil i qinientos ducados porque tiene tambien muchos compartimentos en los quales ay muchas historias de la pacion de Nuestro Salvador de baxo relieve fuera de unas pilastradas de colunas corintias que tiene por las cantoneras que son de relieve entero y otras lavores de sincel con lo qual todo quedo estimado por una de las excelentes obras que se allan en Portugal. Esta caxa dio el rey don Sevastian para cofre del Santicimo Sacramento pero no sirve de ello por aver salido un poco grande. (in Libro primeiro de la historia de la ynclita Cavalleria de Christo en la Corona de los Reynos de Portugal, Jerónimo Román)
A «caxa de plata dorada» referida pelo historiador e frade agostinho Jerónimo Román (1535/1536–1597), que se encontrava no Convento da Ordem de Cristo em Tomar, deverá com muita probabilidade corresponder a um cofre eucarístico que hoje se expõe no Museu Nacional de Arte Antiga. Ainda que, como refere o cronista, a sua função enquanto cofre do Santíssimo tenha sido aparentemente colocada de parte por «aver salido un poco grande», todo o programa iconográfico narrativamente explanado nas várias secções da alfaia remete para o ciclo cristológico da Paixão, mobilizado em torno da centralidade da Última Ceia.
Para além da representação em baixo-relevo da Última Ceia na face frontal do cofre, enquadrada pela presença de notáveis figuras escultórias dos evangelistas São Mateus e São João, apresenta-se, na face traseira, o episódio da Prisão de Cristo, ladeado pelas esculturas dos evangelistas São Marcos e São Lucas; e, nas faces laterais, as representações de Cristo no Horto das Oliveiras e do Véu de Verónica. Se a existência de diversas inscrições com louvores e hinos mais ou menos ligados à temática eucarística (Aleluia, Sanctus, Tantum Ergo, Panis Angelicus, etc.) enriquecem a narrativa subjacente, o programa iconográfico tem o seu desenvolvimento na tampa do cofre, onde se apresentam sequencialmente a Crucificação, o Calvário, a Deposição de Cristo da Cruz e o Enterro de Cristo.
No interior da tampa, anjos levemente gravados em torno dum esplendoroso sol com rosto humano acentuam o caráter sagrado da adoração eucarística, algo que é completado pela inscrição Vere Dominus est in loco isto («O Senhor está neste lugar»), extraída das palavras do patriarca Jacob. Rematando este cofre e, simbolicamente, concluindo todo o programa iconográfico, ergue-se a figura triunfante de Cristo Ressuscitado.
Rematando este cofre e, simbolicamente, concluindo todo o programa iconográfico, ergue-se a figura triunfante de Cristo Ressuscitado.
Para além da dimensão escultórica que intensamente marca este cofre, bem demonstrada através quer das classicizantes figuras dos evangelistas e do Ressuscitado, quer dos baixos-relevos executados com precioso cinzel, uma forte utilização de elementos arquitetónicos prolifera por toda a sua estrutura, demonstrando-se uma relação com a tratadística associada ao maneirismo internacional. Veja-se, por exemplo, todo o entablamento que suporta a tampa e que por sua vez descansa num conjunto de colunas estriadas com capitéis coríntios e com o terço inferior decorado por ornamentos maneiristas. A emoldurar os baixos-relevos das faces do cofre destacam-se ainda as elegantes cartelas com enrolamentos de gosto maneirista, provavelmente devedoras das gravuras ornamentais que tanto se disseminaram por toda a europa a partir de meados do século XVI. Se na segunda metade de Quinhentos se observaram alterações estilísticas e ornamentais consideráveis, um importante evento eclesial originou uma profunda reforma que acabaria por promover modificações significativas na produção artística ulterior.
De facto, no contexto do Concílio de Trento (1545–1563), no qual a Igreja Católica reafirmou o dogma da Transubstanciação em resposta à negação Protestante da presença real de Cristo no pão e no vinho consagrados, o culto eucarístico teve um incremento acentuado. Proliferaram fundações de irmandades do Santíssimo e, com elas, muitas igrejas e casas religiosas investiram na aquisição (ou foram destino de ofertas pias) de objetos a afetar ao culto eucarístico. Podendo ter servido inicialmente para reserva das partículas consagradas ou para reserva em Quinta-Feira Santa, a encomenda do cofre de Tomar poder-se-á enquadrar neste renovado contexto cultual. A qualidade do seu desenho e a excelência da sua execução colocam-no num ambiente mecenático excecional.
De facto, a doação deste cofre ao Convento de Cristo tem sido associada ao rei D. Sebastião (1554– 1578), fundamentada quer na leitura da já referida descrição de Jerónimo Román, quer na múltipla presença das armas reais sobre o entablamento, figurando, no reverso de cada brasão, um conjunto de três setas coroadas incisas no metal, divisa alternativa do Desejado. O investigador Ricardo Branco atribuiu o risco do cofre ao arquiteto Baltazar Álvares (1560–1630), ideia entretanto citada por outros autores. Ainda que este arquiteto régio tenha apresentado, em 1602, uma proposta para a realização de um Sepulcro do Santíssimo para Quinta-Feira Santa destinado ao cenóbio tomarense, não nos parece que essa encomenda possa corresponder ao cofre que, como referiu o cronista agostinho, «dio el rey don Sevastian» e que, assumindo-se como «una de las excelentes obras que se allan en Portugal», desde 1938 se guarda no Museu das Janelas Verdes.
Museu Nacional de Arte Antiga
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[email protected]
Preços
Normal: Exposição: € 6,00 | Exposição + Museu: € 10,00
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COFRE EUCARÍSTICO
Portugal, séc. XVI (c. 1568–1578) – Prata dourada
A 42,5 × L 36 × P 25,9 cm – MNAA, inv. 819 Our
Fotografia © DGPC/ADF, Luísa Oliveira)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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