Game of Thrones… um drama familiar?

Como descrever esta série? Uns dirão ser uma crítica social e política; outros reveem a grande Guerra das Rosas; outros ainda desprezam-na como “mais uma historieta de fantasia”. Uns quantos fantasiosos arriscam-se a vê-la como um drama familiar.

Como descrever esta série? Uns dirão ser uma crítica social e política; outros reveem a grande Guerra das Rosas; outros ainda desprezam-na como “mais uma historieta de fantasia”. Uns quantos fantasiosos arriscam-se a vê-la como um drama familiar.

Hoje é segunda-feira, mas esta madrugada não houve Game of Thrones. Por muito controverso que possa ter sido o grande final, uma coisa é certa: vai deixar saudades. Como em quase todos os textos já escritos sobre esta série, cuidado – spoilers ahead!

Tudo começou em 2011, quando o pobre Jon Arryn foi secretamente assassinado. O rei, Robert Baratheon, precisava de o substituir na sua função de (basicamente) Primeiro-Ministro, e confiou essa tarefa ao seu melhor amigo, Eddard Stark. Como é bem sabido, ambos acabaram mortos e enterrados. Sem rei – e com a notícia a espalhar-se de que o seu filho não era, na verdade, seu filho –, começou A Guerra dos Tronos. Como disse Catelyn Stark no primeiro episódio da segunda temporada, «there’s a king in every corner now». É uma pena que tenha sido um dos errados a encomendar casamento do seu filho!

Por muito que nos tenham avisado, só no nono episódio da série é que começámos a acreditar: winter is coming! Foi preciso ver o herói perder a cabeça… não figurativamente. Enquanto no Ocidente as esposas assassinavam os maridos, os irmãos se batalhavam e matavam, os pais sacrificavam os filhos,… no Oriente emergia uma rainha boa e justa, nascida da tempestade, mãe de dragões, quebradora de correntes… Durante anos torcemos por vê-la sentar-se no grande trono feito de espadas… Seria finalmente ela a quebrar a corrente de tirania e sangue… Que pena.

Como descrever esta série? Uns dirão ser uma crítica social e política; outros reveem a grande Guerra das Rosas; outros ainda desprezam-na como “mais uma historieta de fantasia”. Uns quantos fantasiosos arriscam-se a vê-la como um drama familiar. Enfim, talvez nunca tenhamos uma resposta, mas uma coisa é certa: naquelas famílias houve muitos e dolorosos dramas, com consequências muito profundas para as personagens. Vejamos rapidamente.

A nossa eterna Khaleesi, da família Targaryen, nunca conheceu o seu pai, rei, louco e assassinado, e o seu irmão vendeu-a como escrava sexual a uma espécie de bárbaros, em troca de um exército – já para não falar que se tornou amante do seu próprio sobrinho, que acabou por matá-la quando ela enlouqueceu (quem o pode julgar?).

O primeiro rei que vemos no trono, Robert, da família Baratheon, viveu o pior dos casamentos que testemunhámos na série – exceptuando talvez os de Craster (se pudermos chamar àquilo casamento…) –, com a mulher, Cersei Lannister, a traí-lo com o seu irmão gémeo (seu – dela, não dele!), ao ponto de nenhum dos “seus” três filhos ser seu.

E que dizer dessa grande família, que sempre paga as suas dívidas, os Lannisters, ricos até não mais, afinal separados e reunidos, rainha, soldado e conselheiro do rei, órfãos de mãe e, do final da quarta temporada em diante, também de pai. Alguém conseguiu contar quantas vezes a irmã tentou matar o mais novo? Para não falar de como os gémeos eram… demasiado apegados.

Não mencionemos a família completamente desestruturada de Walder Frey (a quem a nossa Arya deu a beber do próprio veneno), ou a educação um tanto ou quanto duvidosa de Robin Arryn (que surpreendentemente chegou ao final da série… sem ver o anão voar).

Duas menções honrosas nesta nossa lista seriam ainda as famílias Tyrell e Greyjoy.

A pobre Margeary, da família Tyrell, casou com pelo menos dois reis – três se contarmos com Renly Baratheon, que namorava com o seu irmão, Loras Tyrell. O primeiro marido acabou morto pelo “filho” do próprio irmão, o segundo pela avó de Margeary e o terceiro suicidou-se, depois de a mãe ter morto a própria Margeary… mas pelo menos os irmãos Tyrell morreram juntamente com o pai, incinerados vivos.

Quanto à família Greyjoy, logo desde o duodécimo episódio vemos obscura a relação entre Yara e Theon, e ainda mais obscura com o pai no episódio seguinte… no qual descobrimos que ele ofereceu o filho como troca aos Stark no final da Guerra do Usurpador. Destes, enfim, quase podemos dizer – não fosse o seu tio ter morto o seu irmão, pai de Yara e Theon – que era um drama familiar normal. O melhor é nem falarmos da família Bolton. Ufa!…

Não contando com os Tully (que praticamente não aparecem como família), a melhor (num sentido não irónico) talvez ainda tenha sido a família Martell – ao ponto que chegámos.

E depois há a família Stark. Se as outras famílias são um drama, esta parece o arquétipo da família feliz (à parte do filho bastardo de Ned, que na verdade não é filho dele, mas sobrinho, e não é bastardo, mas herdeiro do trono – nada de que possamos culpá-los). Talvez seja esta a única família feliz: um casal legítimo e fiel onde não há incesto e há amor; o filho crescido e galã que gosta de brincadeiras de homem; um outro que adora ouvir histórias e trepar muros; o que é só uma criança chata (há um em todas as famílias felizes); a filha que tem a mania que é uma princesa; a filha que é maria-rapaz e troça da irmã; e o filho com um sentido apurado de dever que herdou do pai (que na verdade é tio, mas na prática é pai). Até tinham seis lobos cujo crescimento pudemos acompanhar – Grey Wind, Summer, Shaggydog, Lady, Nymeria e Ghost. Estava tudo pronto para correr bem… que bem começou.

Enfim. Pode uma série acusada de ter tanta violência e nudez ser cultura? Talvez esta fosse uma pergunta a fazer antes de 2011… agora a evidência fala por si.

Ai, se nós soubéssemos em 2011 onde é que isto ia terminar! Como a Ygritte diria, «you know nothing, Jon Snow»! Pai, mãe, irmão mais novo e irmão mais velho (com esposa e filho incluídos) – mortos; Sansa (mais conhecida por Sonsa) – rainha de Winterfell, agora um reino independente; Bran, the Broken – rei dos Seis Reinos e Three-Eyed Raven, não num trono de ferro, mas de rodas; Arya – uma assassina exímia, salvadora da humanidade, heroína de guerra, que parte para explorar novos mundos; Jon Snow – Comandante da Night’s Watch, morto e ressuscitado, Rei do Norte, quase-Rei dos Sete-Reinos, de volta à muralha. Esta família – que não era um drama – guiou completamente o drama da série. A ela, caso existisse, teríamos que agradecer as alegrias, os momentos de paz, as lágrimas, a tensão… Durante nove anos, eles foram a nossa família: exultámos com as suas vitórias e, à parte talvez de Rickon, chorámos as suas mortes.

Enfim. Pode uma série acusada de ter tanta violência e nudez ser cultura? Talvez esta fosse uma pergunta a fazer antes de 2011… agora a evidência fala por si. A história segue por algo entre seis e oito anos, em oito temporadas que correm em nove anos, de 2011 a 2019. Vemos as personagens a crescer, uma família a separar-se, morrer, reerguer-se e reunir-se. Por muito que gostemos de praia, os Stark alcançaram o feito de pôr constantemente na nossa boca: «the winter is coming».

E chegou, enfim. Os fãs ficaram divididos – uns adoraram, outros detestaram. Mas the winter has come, e Os Ventos de Inverno deram lugar a Um Sonho de Primavera. E que sonho! Não é sempre assim na vida?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.