Descrição:
Eugénia Kraft percorre, nas páginas de um diário, os exigentes passos da vida nos seus encontros e desencontros. Trata-se de uma história de recomeços, numa re-elaboração de camadas de sentido.
«Tenho sempre dificuldade em responder à pergunta sobre o “tema” do livro. De que trata, afinal? Bem, não sei se há um “tema” mas, na minha cabeça, a Eugénia Kraft trata de sabermos recomeçar, trata da vida quando ela vai a meio e trata sobretudo do difícil encontro entre a fé e a razão. Penso que qualquer bom recomeço na vida tem de partir de um abraço entre a fé e a razão. A razão dá-nos sentido crítico mas a fé abre-nos o coração a algo maior que nós mesmos. Creio que sem um qualquer destes lados (sem a fé ou sem a razão) a vida fica coxa e arrogante. Mas também estou convencido de que não há abraço entre os dois enquanto cada um não deixar o seu autoconvencimento e mania da superioridade e não aceitar “morrer” um pouco para deixar espaço ao outro» (do Posfácio).
Biografia do autor:
Nuno Tovar de Lemos, s.j. nasceu em Lisboa, em 1960. Licenciou- -se em Engenharia Eletrotécnica no Instituto Superior Técnico e em 1984 entrou na Companhia de Jesus. Estudou Teologia nos Estados Unidos (tendo o grau de Master of Divinity pela Weston School of Theology de Cambridge) e na Universidade Gregoriana, em Roma, onde se licenciou em Teologia Fundamental. Foi ordenado sacerdote em 1995 e durante 20 anos dedicou-se sobretudo à pastoral universitária em Braga, Coimbra, Porto e Lisboa. É autor de O Príncipe e a Lavadeira – histórias simples para falar de Deus e de nós e Textos para Rezar – 24 textos do Evangelho com comentários e sugestões para a oração. Atualmente vive em Portimão e trabalha na Paróquia de Nossa Senhora do Amparo desta cidade.
PUBLICAÇÃO DE EXCERTO (início do livro)
4 dez 2015 – 6ª feira
Provavelmente não te lembras de mim. É por isso mesmo que te escrevo.
Estive hoje de manhã no consultório do Dr. Mendes Aurélio, neurologista. Um pequeno alto na cabeça, descoberto há seis meses pelo barbeiro, obrigou-me a uma série de idas ao hospital. Hoje foi-me finalmente confirmado o resultado de um sem-número de TAC’s e outros exames que tive de fazer e que até chegaram a ser enviados para a Alemanha. Afinal o alto não tem importância nenhuma. Mas, no caminho, descobriu-se que eu tinha um outro problema, uma «patologia raríssima», usando as palavras do médico.
O complicado nome da doença, não o decorei. Fixei apenas que não mata e que, muito provavelmente, me fará esquecer tudo o que aprendi durante estes 40 e tal anos: experiências, recordações, «momentos inesquecíveis»… Será – explicou-me o Dr. Aurélio – como acordar uma manhã em Tóquio sem saber onde está ou como foi lá parar, sem conhecer ninguém e tendo que explorar tudo como se fosse a primeira vez. Só que não acordarei em Tóquio mas aqui, na minha própria terra e na minha própria casa. Terei de aprender como se chega do quarto à casa de banho. Curiosamente, segundo o Dr. Mendes Aurélio, há uma grande quantidade de infor- mação que não esquecerei por ter já passado para um nível muito básico de memória. É a informação associada ao que ele chamou de «funções básicas e primárias», que vão desde o caminhar ao ler. Numa palavra: parece que serei bastante ignorante mas basicamente autossuficiente. Muito provavelmente conseguirei ler (pelo menos a língua materna) mas não me lembrarei de nenhum livro que tenha lido; saberei pensar corretamente mas não me lembrarei que ideias tinha adotado como certas ou como erradas. Poderá vir até a apaixonar-se uma segunda vez pela mesma pessoa, gracejou o Dr. Aurélio (sem saber que esta parte já está a acontecer). Em tudo terá de recomeçar, concluiu ele.
O médico deu todas estas explicações com uma isenção emocional que teria chocado muito à maior parte das pessoas mas de que eu gostei. Perguntei-lhe se havia a certeza de isto acontecer ou só uma probabilidade. Ele disse que era só uma probabilidade, embora alta. Quanto? Respondeu-me sem hesitações: À volta de 80%. Perguntei-lhe daqui a quanto tempo seria, caso acontecesse, e ele disse que – de acordo com a evolução da doença e segundo a sua opinião – teria à volta de dois meses. E acrescentou que o mais provável, se acontecer, é ser uma coisa repentina, não gradual. Ainda lhe perguntei se haveria necessidade de eu ser internado. Ele respondeu-me que não, que chegar a Tóquio sem conhecer o sítio não se resolve com um internamento mas com explorar a cidade. Já em pé, a meio da despedida, lembrei-me de lhe perguntar se haveria algum medicamento… Ele fez que não com a cabeça mas depois disse: Bem, posso receitar-lhe um ansiolítico, se quiser… Respondi-lhe que lhe pediria se viesse a precisar.
As palavras do médico «Em tudo terá de recomeçar» desencadearam em mim uma série de sentimentos diferentes e até contraditórios. Provocaram ansiedade mas, surpreendentemente, também alguma paz. Fiquei estranhamente tranquilo. Acho que, no fundo, me seduz esta ideia de poder recomeçar tudo do zero. Com o avançar dos anos tem-se tornado cada vez mais claro para mim o peso das escolhas passadas – das que fiz e daquelas que a vida fez por mim – e a dificuldade que sinto em fazer uma coisa que preciso mesmo de fazer: mudar. Mudar por dentro. Vivi muitos anos à espera que os outros ou as circunstâncias mudassem. Agora entendo que sou eu que tenho de mudar – antes de mais – se quero que coisas boas aconteçam na minha vida. Tenho em mim muitos travões em relação à mudança. Até em coisas pequenas. Na semana passada vi numa montra uns patins, daqueles de quatro rodas que se usavam antigamente. Senti momentaneamente um desejo quase infantil de os comprar e de andar neles ao longo do rio, no parque da zona ribeirinha, como quando tinha 13 anos. Tê-lo-ia feito, não fosse o facto de não me ficar bem, com esta idade, andar de patins. Se fosse uma boa mota era outra conversa… Poderás pensar que é uma questão de preconceito e que o «ficar bem», a opinião dos outros, não deve limitar as nossas escolhas. Seria fácil se fosse só isto mas o que me limita não é a opinião dos outros mas sim a minha própria, já que – por qualquer razão – aprendi a pensar que andar de patins com a minha idade é ridículo. Posso não ligar à opinião dos outros e andar de patins na marginal mas andarei ridículo por dentro e isso tirar-me-á todo o prazer do passeio ao fim da tarde ao longo do rio.
No fundo a questão é esta: quando, aos 13 anos, passava os dias em cima de um par de patins, via só estrada pela frente. O percurso estava todo em aberto. Desconhecia esta verdade fundamental: o caminho que fazemos acaba por fazer-nos também a nós. O que é muito bonito, assim dito, mas pode-se tornar uma prisão.
Falo de andar de patins nem sei porquê, foi a primeira coisa que me veio à cabeça. Talvez nunca chegue a andar de patins mas gostaria, por exemplo, de poder falar com os meus novos vizinhos livremente, sem me deixar influenciar pelo facto de serem de Paris e eu me ter habituado a pensar que os parisienses têm a mania da superioridade.
Será talvez por causa de questões deste tipo que a possibilidade de um apagão da memória me deixou estranhamente em paz. Senti que o mapa poderia ficar de novo aberto. Como se a natureza subitamente estivesse disposta a tirar-me das costas a pesada mochila que fui enchendo ao longo de várias décadas e me impede agora, aos 45 anos de idade, de viver com mais liberdade a segunda parte da minha vida.
Por outro lado, tive medo de me ver separado desta mochila. Nela não estão só preconceitos mas também experiências, reflexões e momentos de tal maneira marcantes para mim que, ao perdê-los, arrisco perder-me. Assustei-me ao pensar que um dia não me lembraria que o chefe de mesa do restaurante da Falésia se chama Antunes, que esqueceria os momentos que vivi com a Flowers, os três dias que passei com o Zé em Cuba, ou o 6º capítulo de um livro muito especial… Mas apavorei-me, sobretudo, ao pensar que voltaria muito provavelmente a cometer os mesmos erros sem me poder socorrer de tudo o que depois aprendi à sua custa. Seria terrível.
Foi então que pensei em escrever-te estas linhas, a ti que és possivelmente um upgrade de mim mesmo. Talvez outra pessoa – perante o possível cenário de um apagamento da memória – quisesse deixar registados todos os por- menores da sua vida para poder depois fazer tudo igual: a loja onde costuma comprar meias, a quem deve dar os parabéns e em que datas, quais os seus CD’s preferidos, onde costuma ir passar a 2ª quinzena de agosto e quanto é que o proprietário da casa costuma pedir, quais os seus chás favoritos, de que livros gosta… Isto para mim não tem sentido. Ainda que fosse possível fazer com que o futuro repetisse o passado (e não é, por mais folhas que se escrevam) a ideia não me seduz. Não quero fazer uma cópia mas tentar um recomeço. Um começo novo. Este recomeço há de certamente implicar aceitar perder muitas coisas para serem possíveis outras novas: novas ideias, novas maneiras de estar na vida, novos gostos, novos objetivos, novas maneiras de olhar para mim, novas compreensões acerca do que é a vida e o que estamos cá a fazer…
Passou-me também pela cabeça deixar-te uma espécie de manual de bem-viver, uma síntese bem organizada de princípios e grandes verdades que não deverias nunca esquecer. Desisti logo, por duas razões muito simples: a primeira é porque não possuo tal síntese; a segunda é porque, se não fores totalmente diferente de mim, não gostarás que alguém te diga o que deves pensar ou fazer. Por isso fica descansado: apenas estimularei o teu pensamento com confidências de histórias passadas e reflexões que entretanto fui fazendo, as- sim como quem desabafa com um amigo diante de canecas vazias de cerveja, quando a noite já vai adiantada e quase tudo parece afinal relativo. Ou seja: quero deixar por escrito coisas que te ajudem a recomeçar. Pensei em escrever algo neste caderno todos os dias. O melhor até será à noite, antes de deitar, aqui na sala. Ou, pelo menos, de dois em dois dias.
E se os 20% de probabilidade de não acontecer nada ganharem sobre os 80% de probabilidade de esquecer tudo, creio que – mesmo assim, neste caso – o que aqui tenciono escrever servirá à necessidade grande que sinto de recomeço. E espero ter a coragem de o fazer: de me rever, de deixar para trás o que deve ser deixado e de recomeçar. Mesmo sem apagão.
Acordaste, encontraste este livro algures entre objetos que te são estranhos, embora te pertençam. Tens talvez ainda uns bons anos de vida diante de ti. Não te prescrevo nada quanto ao que deves fazer nem quanto à maneira como deves viver. A vida tem de ser vivida. Peço-te apenas uma coisa: lê estas páginas até ao fim. A certeza de que o farás dá-me plena segurança de que as quatro décadas de vida que já vivi não foram em vão. Depois compra um par de patins ou faz o que muito bem entenderes.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.