Eucaristia, confinamento e bem comum

A prioridade da Igreja não é defender o seu espaço na sociedade ou reivindicar os seus próprios direitos eventualmente descurados pelas autoridades civis, mas despoletar processos que promovam a "salus" (salvação, saúde) da pessoa humana.

A prioridade da Igreja não é defender o seu espaço na sociedade ou reivindicar os seus próprios direitos eventualmente descurados pelas autoridades civis, mas despoletar processos que promovam a "salus" (salvação, saúde) da pessoa humana.

Os portugueses (e não só) estão a viver, há quase dois meses, um grande sábado santo. Este grande sábado começa a cansar-nos física, espiritual e psicologicamente. Como o povo no deserto, começamos a revoltar-nos porque temos fome e, tal como o povo fez com Moisés, alguns até reclamam contra quem tem a missão de nos guiar nesta travessia, os nossos bispos, com apelos indiretos à desobediência civil. Outras vezes revoltamo-nos também contra as autoridades civis, quando estas parecem ter dualidade de critérios no que respeita às regras de confinamento. Embora reconheça que tudo isto seja natural nesta nossa peregrinação através do deserto, pergunto-me: será esta revolta um movimento do Espírito? Será esta revolta o modo mais católico de atravessarmos esta pandemia?

O Concílio Vaticano II veio restaurar na Igreja uma atitude mais evangélica quanto ao modo de olhar o mundo, decidindo-se firmemente mudar a sua postura no que concerne à sua relação com a história e o ser humano. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), no seu Proémio, veio reafirmar algo que, nos séculos anteriores, sobretudo após o fim da Cristandade, parecia ter ficado em segundo plano: que a Igreja Católica, rosto do coração misericordioso de Deus, “sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história” e, portanto, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem” são a prioridade da Igreja. O anúncio de Cristo não pode, portanto, separar-se da promoção da dignidade de cada ser humano e do bem da comunidade, que vai para além das fronteiras da Igreja Católica.

Embora reconheça que tudo isto seja natural nesta nossa peregrinação através do deserto, pergunto-me: será esta revolta um movimento do Espírito? Será esta revolta o modo mais católico de atravessarmos esta pandemia?

Tal atitude tem claramente consequências na relação da Igreja com a pólis, nomeadamente no que concerne à promoção do bem comum. Como diz a GS 26, “cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e mesmo o bem comum de toda a família humana.” Ao mesmo tempo, a promoção do bem comum não aniquila o indivíduo mas visa, em última instância, “tornar acessíveis ao ser humano todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana”, nomeadamente a saúde física e espiritual. Por isso, embora a Eucaristia e a dimensão comunitária da fé sejam algo de fundamental e indispensável para a vida do grupo “Igreja Católica”, porque vivemos numa sociedade mais ampla do que o nosso grupo, somos chamados a ponderar todos os bens em conflito. Ora, neste momento, é-nos pedido o sacrifício de não participarmos plenamente da Eucaristia em comunidade e, no caso dos sacerdotes, de não celebrarmos fisicamente a Eucaristia com o nosso povo, em nome de um bem maior que é a proteção da saúde e impedir que se propague um vírus extremamente contagioso, que põe a vida dos mais frágeis em risco.

Portanto, embora seja exigente este sábado santo, não precisamos de nos lamentar nem apoucar por cumprirmos, o melhor que podemos, a nossa missão e por darmos ao país um grande testemunho de solidariedade e abnegação em favor de todos. À luz do seu Mestre, a prioridade da Igreja não é defender o seu espaço na sociedade ou reivindicar os seus próprios direitos eventualmente descurados pelas autoridades civis, mas despoletar processos que promovam a salus (salvação, saúde) da pessoa humana no seu todo e de todas as pessoas humanas, crentes e não crentes. Apesar da ausência da Eucaristia, sabemos que neste sábado santo o Senhor ressuscitado continua a caminhar connosco, nas Escrituras, sempre que nos juntamos para orar em família ou em grupo e no templo que é o nosso próprio corpo, habitado pelo Espírito. Portanto, continuamos a ter ao dispor fontes onde matar a nossa sede espiritual.

Embora seja exigente este sábado santo, não precisamos de nos lamentar nem apoucar por cumprirmos, o melhor que podemos, a nossa missão e por darmos ao país um grande testemunho de solidariedade e abnegação em favor de todos.

Julgo ser este o entendimento da nossa Conferência Episcopal ao estabelecer as medidas que têm vindo a ser apresentadas ao longo destes tempos de crise. Ponderando prudentemente os bens em conflito, os nossos bispos têm-se antecipado inclusive às autoridades civis, na proteção da saúde da comunidade e no combate à propagação do vírus, mesmo com sacrifício de momentos essenciais da nossa vida comunitária de fé. A este propósito, queria sublinhar dois pontos que me parecem paradigmáticos. O primeiro, o facto de os Bispos e o Santuário de Fátima terem mantido a decisão – certamente com grande sofrimento para todos nós – de celebrar as cerimónias do 13 de maio à porta fechada, apesar de uma aparente e pouco clara abertura do Governo para que isso acontecesse. O segundo, a nota pastoral “Hora de ir recomeçando”, publicada no passado domingo pelo Arcebispo de Braga, que merece uma leitura orante.

Se depois nem todas as instituições que fazem parte da pólis dão o mesmo testemunho de preocupação pelo bem comum, é todo um outro tema. Com todo o respeito pelo trabalho desenvolvido pelas instituições em causa, considero que nem a Assembleia da República, nem a CGTP deram bons exemplos de promoção do bem comum no modo como celebraram o 25 de Abril e o 1.º de Maio, respetivamente. Mas, se achamos infeliz a atitude destas instituições, porque queremos nós imitá-la? Será que a atitude de vitimização com que alguns se têm revoltado em relação a estes acontecimentos é o testemunho mais evangélico que como cristãos podemos oferecer neste momento à comunidade?

É compreensível que nos sintamos desanimados e até frustrados com os sacrifícios que nos são pedidos, tal como os discípulos se sentiram naqueles cinquenta dias até serem fortalecidos com o dom do Espírito, e ganharem forças para sair do Cenáculo e anunciar a todos os povos as maravilhas de Deus. Apesar das aparições do Ressuscitado, o processo de ressurreição interior levou tempo a dar os seus frutos… Saibamos aproveitar como um tempo de graça este grande sábado santo, enquanto aguardamos com alegre esperança o dia de Pentecostes, em que alguns de nós – sim, porque as Igrejas irão abrir, mas com grandes restrições! – nos poderemos reencontrar para celebrar a Ceia.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.