Eu Capitão

Vendo a costa siciliana, ao longe, o nosso capitão, subiu à proa e gritou: “Io Capitano. Salvei todas as pessoas, ninguém morreu!" É esta alegria do protagonista, dos que com ele viajam e de nós que os acompanhamos nesta viagem.

Vendo a costa siciliana, ao longe, o nosso capitão, subiu à proa e gritou: “Io Capitano. Salvei todas as pessoas, ninguém morreu!" É esta alegria do protagonista, dos que com ele viajam e de nós que os acompanhamos nesta viagem.

Recordo-me de há uns anos atrás ter estado em Ceuta e do contacto que tive com jovens vindos, a sua maioria, da África Subsaariana. Muitos tinham deixado as suas famílias, sem as avisar, vinham em busca de uma vida melhor e de um sonho europeu que era alimentado, em parte, pelas redes sociais, na altura o facebook, onde visualizavam só o lado positivo de quem tinha chegado à Europa. Chegados ali, à margem sul do mediterrâneo, contavam histórias atrozes sobre a viagem. Diante dos medos e do sofrimento a resposta era óbvia: “se os outros conseguiram eu também vou conseguir”.

“Eu Capitão” fala disto mesmo, conta a viagem de dois jovens senegaleses com tons que vão do lírico ao trágico. Começa por nos mostrar a rotina da sua vida em Dakar, no Senegal, povoada de jovens e crianças, e cheia de vida e de energia. Os seus dias são ocupados no seio da família por rotinas simples, pobres e sem grandes horizontes para jovens que, hoje, têm acesso ao que está a acontecer no mundo. O “maravilhoso mundo novo” que trazem as redes sociais está bem presente no filme, quando os dois jovens protagonistas vão “scrollando” e vendo no seu telemóvel imagens que os deixam deleitados e animados com a possibilidade de viajar para a Europa.

O filme é apresentado como uma aventura de Seydou e Moussa, com 16 anos, que têm o sonho de chegar a França e tornarem-se músicos. Sonham, juntam dinheiro em segredo, fazendo trabalhos depois da escola e, um dia, sem nada dizerem, saem de casa em direção à desejada Europa. Antes de partirem, um dos jovens tem uma longa conversa com a mãe e fala-lhe deste desejo, o qual a deixa muito triste e mesmo revoltada. Não quer que o filho parta e arrisque a sua vida. São ainda avisados por um ancião, que tinha regressado da Europa, das dificuldades que irão encontrar: não partam, no deserto irão ver só morte e dor, na Europa faz frio e vão ver pessoas a dormir na rua. No entanto, nada os demove.

O início da viagem é divertido e seguro. Saem de Dakar, como tantos outros, em autocarro, mas cedo se apercebem da corrupção que os obriga a pagar para não irem presos por causa do seu passaporte falsificado. Neste sentido o filme mostra-nos o drama por que passam todos aqueles que tentam chegar à Europa através do deserto do Saara. São várias as máfias e os enganos a que estão sujeitos ao longo da travessia: têm de pagar muito dinheiro por qualquer transporte que seja feito, se alguém cai ou fica para trás no deserto ninguém acode, são obrigados a percorrer grandes distâncias a pé, estão sujeitos a serem presos e torturados caso as famílias não paguem um resgate, alguns são vendidos como escravos e, por fim, quando são libertados, são deixados em Tripoli a aguardar uma oportunidade para atravessarem de barco em direção a Itália.

Seydou e Moussa, primos e amigos de infância, perdem-se nesta viagem e reencontram-se em Trípoli. Moussa foi baleado numa perna e precisa urgentemente de ser operado. Seydou, movido pelo desejo de atravessar o mediterrâneo e a urgência em salvar o amigo, aceita pilotar um velho barco sobrelotado, sem saber nadar e sem qualquer experiência de pilotar barcos. É instruído e avisado que é só seguir em frente e um dia depois está em Itália. Este é o último, decisivo e perigoso desafio, e onde milhares de pessoas têm perdido a vida. O nosso improvisado capitão quer chegar e salvar todas as pessoas. Esta é precisamente uma das imagens fortes do filme. Vendo a costa siciliana, ao longe, o nosso capitão, subiu à proa e gritou: “Io Capitano. Salvei todas as pessoas, ninguém morreu!” É esta alegria do protagonista, dos que com ele viajam e de nós que os acompanhamos nesta viagem.

O filme desafia-nos a um olhar atento, contemplativo e compassivo, ao mesmo tempo apela ao exercício de algo fazermos para que estas tragédias não se repitam eternamente. Que bom seria que estas pessoas não se vissem forçadas a emigrar, que bom seria que tivessem condições para decidir ficar nos seus países, mas, e ao mesmo tempo, que bom seria que tivessem alternativas seguras e legais para emigrar. Como diz o Papa Francisco que sejam “livres de escolher se migrar ou ficar” (Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado 2023)

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.